Como integrar a informática na escola com o digital na vida do aluno?1
O problema da relação entre tecnologia, sociedade e linguagem está em todo canto, sob a forma de um falso dilema entre a informática como técnica e a cultura da informática, isto é, informática como uma forma de conceber o mundo e agir sobre ele. Como superar esse dilema se você ensina informática ou com informática? Aliás, qual é o papel do professor de informática hoje? Liste alguns dos usos da informática que você considera importantes, instigantes, prazerosos ou transformadores no seu quotidiano como cidadão, consumidor, profissional e como sujeito participante do seu tempo e da sua cultura (sua faixa etária, o lugar onde vive, a herança étnica de sua família etc.). Agora faça uma lista dos usos do computador que fizeram parte da sua formação escolar ou da formação escolar que é oferecida pela escola em que você trabalha ou quer trabalhar. Parecem listas que dialogam entre si ou há algo de esquizofrênico nelas? Se parecem listas de coisas bem separadas, e se a escola não é um lugar separado da vida, como fazê-las conversar?
Objetivos Educacionais:
- Situar a informática no atual ecossistema semiótico-cognitivo-cultural humano;
- Utilizar os conceitos de alfabetismo, letramento, letramento digital e multiletramentos para caracterizar diferentes usos da informática na escola;
- Identificar características dos letramentos digitais juvenis não escolares que podem proporcionar pontes com o ensino-aprendizagem de informática;
- Conceber formas de utilizar o ensino de informática como um catalisador da interdisciplinaridade e do pensamento crítico na escola por meio de práticas situadas.
Índice:
- 1 A informática como o novo tempo do espírito humano
- 2 Informática e cultura: o novo ethos
- 3 O que é letramento?
- 4 Multiletramentos
- 5 Convergência e Produsagem
- 6 Multimodalidade e transmidialidade
- 7 Informática e letramentos digitais críticos
- Resumo
- Leituras Recomendadas
- Exercícios
- Notas
- Referências
- Sobre o Autor
- Como citar este capítulo
- Comentários
1 A informática como o novo tempo do espírito humano
No começo, eram o corpo e o som, e daí a fala: a língua era nossa maior tecnologia intelectual (DASCAL, 2002), e o seu uso social era uma forma de nos manter coesos frente às pressões da natureza e aos mistérios do mundo. Tempo de Oralidade. Depois vieram os grafos, marcas duráveis, gestos riscados que remetiam primeiro a ideias e coisas e, mais tarde, com os alfabetos, aos sons das palavras na própria língua. Esse salto de representação da “coisa” para a da “palavra que diz a coisa” mudou tudo à sua volta (GALVÃO; BATISTA, 2006). Chegava o tempo do Letramento. Nele, a Oralidade não morreu; tornou-se secundária, subordinada à escrita; mas, pela escrita, renovou-se.
Com cada novo suporte – a argila, o papiro, o couro, o papel etc. –, ia ficando mais fácil transportar a escrita no tempo e no espaço, separar o dizente do seu dizer. Com a página impressa, a escrita ganhou o mundo. Nossa mídia primária2 (MENESES, 2004), o corpo, cedia definitivamente espaço para uma mídia secundária, a escrita. Foi uma revolução semiótico-cognitivo-cultural.
Todavia, para que a revolução se “globalizasse” e estabilizasse, foi preciso um upgrade: o conceito de autoria, a ortografia padronizada, os índices, as margens, a paginação, as referências, as fichas catalográficas e bibliografias – elementos que transformaram textos em “produtos” a circular num novo “mercado das letras”. Surgiram as gramáticas, os dicionários, os acordos ortográficos, as convenções tipográficas. Assim como a língua disciplinara os gestos para tornarem-se escrita, a imprensa passou a disciplinar a língua; exigia um “sistema operacional”. O falante que virara escrevente tornou-se um letrado, um usuário compatível com o sistema.
Veio então o tempo em que descobrimos como transmitir os gestos e a voz por ondas eletromagnéticas. O telégrafo, o telefone, o rádio e a TV reinventaram, mais uma vez, os agenciamentos entre as ideias, o corpo, a língua, o tempo e o espaço, criando uma terceira ecologia semiótica-cognitivo-cultural, que, mais uma vez, não eliminou nem o escrito nem o oral, mas os submeteu e os renovou. Essa passagem das mídias secundárias para as mídias terciárias (MENEZES, 2004), no entanto, custou caro: participar plenamente da sua ecologia requereu o uso de artefatos codificadores/decodificadores, “caixas pretas” das quais passamos a depender, mas cujo funcionamento interno poucos compreendem.
Notou o paradoxo nessa História? Quanto mais se busca recuperar a voz e o gesto “direto da fonte”, mais etapas intermediárias de codificação e conhecimento vão se tornando necessárias; e mais especializados, e opacos, vão se tornando os conhecimentos “embarcados” nessas mediações (BOLTER; GRUISIN, 2000; LATOUR, 2000).
De umas décadas para cá, a voz, o gesto, a marca e a onda viraram bits, algoritmos, e estruturas de dados (MANOVICH, 2001). O ecossistema virou “quaternário”, porque as caixas-pretas mediadoras tornaram os outros três tipos de mídia digitalizáveis, ou seja, (re)programáveis, (re)combináveis e (re)distribuíveis, por meio de um sistema complexo e altamente vascularizado de (re)transmissão. Se com a página escrita houve uma “objetificação” da memória – a qual, no tempo da Oralidade, dependia de mitos e recursos mnemônicos –, na era da Informática, nossas memórias podem ser estocadas fora do corpo; e as máquinas que, em conjunto, formam “lugares” misteriosos, como “a nuvem”, e nos permitem recuperá-las ad hoc, podem serem remixadas, reconvertidas e redistribuídas de várias formas. O acesso a (praticamente) todo o acervo da memória cultural do Ocidente, por qualquer um em qualquer lugar via Internet, tem repercussões culturais e epistêmicas importantes, como a emergência do remix como forma discursiva de destaque e a baixa tolerância dos alunos para aprendizagens do tipo “just in case” (caso você precise no futuro”) e a preferência pela aprendizagem “just in time” (sob demanda, na hora em que é útil aprender aquilo)
No computador, os conteúdos são “programáveis”; logo, é possível não só representar o conhecimento como simular os objetos e as situações a que ele remete. Assim, o conhecimento pode se passar menos pela explicação (fala/escrita) e/ou pela analogia (representação), e mais pela experiência (simulação). A esse percurso dos nossos sistemas semiótico-cognitivo-culturais, o filósofo Pierre Levy (2004) chamou de “os três tempos do espírito”.
2 Informática e cultura: o novo ethos
A propriedade semiótico-cultural mais importante da informática é que ela permite integrar todas as mídias e linguagens num mesmo tecido significante cujo substrato é matemático, portanto calculável e programável. Auxiliado por algoritmos especializados,
pesquisa à produção à distribuição. Isso está no cerne dos fenômenos da convergência e da transmidialidade3, que vão ser abordados nas seções 5 e 6.
Colocando as coisas assim, parece que está tudo perfeito, não é? Mas, como sabemos, não está. Ainda que leigos possam produzir e distribuir mídia digital, a verdadeira democratização dessa produção requer que aqueles que a produzem e a consomem sejam capazes de entender como isso é possível e de acionar as referências cognitivas e discursivas necessárias para um processo reflexivo de leitura, representação e simulação do mundo.
Ademais, junto com a transformação radical do ecossistema semiótico-cognitivo-cultural trazida pela informática, está em curso uma revolução nos tipos de conhecimento, nos valores, nas atitudes e nos métodos de produção e recepção de conteúdos midiáticos, algo que Lankshear e Knobel (2007) chamam de um “novo ethos” digital. É com esse ethos habilitado contingencialmente e fomentado pela informática que os educadores de todas as áreas precisam se haver, agora, se quiserem que a escola permaneça relevante para a vida dos alunos.
Novos recursos técnicos com novos preceitos éticos
Os educadores Colin Lankshear e Michele Knobel (2007) acreditam que os “novos letramentos” combinam os recursos técnicos da informática (new technical stuff) com um novo ethos (new ethos stuff), que se contrapõe aos modos de agir e aprender da era do impresso. O novo ethos…
Enfatiza | Enfraquece |
---|---|
Participação | Publicação editorial |
Conhecimento distribuído | Conhecimento centralizado |
Compartilhamento de conteúdo | Copyright |
Experimentação | Normatização |
Troca | Difusão |
Quebra de regras criativa | Controle |
Hibridismo | Pureza |
(Adaptado de Lankshear e Knobel 2007, p. 21)
As novas gerações de estudantes já estabeleceram com as “novas técnicas” o mesmo tipo de familiaridade que as gerações anteriores tinham com a TV, o rádio ou o livro. Talvez por isso, muitos dos nossos alunos atuais julguem o domínio de conteúdos específicos de informática dispensável, ou esperem que esse conhecimento venha “embarcado” em novas plataformas ou “automatizado” em aplicativos gratuitos. Ledo engano da parte deles, não é mesmo? Em muitos países, o ensino explícito de conhecimento específico de informática tem sido enfatizado cada vez mais cedo. É preciso estar claro para o aluno e para o professor (de informática e outros) que conhecimento “embarcado” ou “automatizado” deixa de ser conhecimento, vira procedimento. Conhecimento de verdade é “situado”, “praticado”, “ancorado” na prática social, em contexto, em meio a interesses conflitantes, restrições éticas, técnicas e econômicas, ideais e valores locais. Para que a construção de conhecimento em informática na escola seja “situado”, não apenas naquele contexto, mas no espírito do nosso tempo, ele não pode estar divorciado do novo ethos que ele mesmo habilitou. Ele tem que ser parte da cultura, quer a chamemos de cultura digital, cultura do software, cultura da Internet ou de outro modo qualquer.
3 O que é letramento?
Letramento é um termo relativamente novo em língua portuguesa. Ele é a tradução da palavra literacy, em inglês. Acontece que, em inglês, usa-se essa única palavra para designar duas coisas distintas. Uma é a capacidade “técnica” de ler e escrever, que adquirimos pela alfabetização. Outra é toda a gama de conhecimentos implicados no uso social da escrita, além dos modos de ver o mundo e dos valores culturais e éticos vinculados à cultura do Letramento. Obviamente, letramento também implica todas as relações de poder que a escrita codifica (por exemplo, o conceito de autoria, a noção de que a palavra escrita tem mais valor do que a palavra falada e o preconceito contra quem não domina a ortografia oficial da língua etc.).
Para designar o primeiro sentido de literacy, nós não dispúnhamos de uma palavra “positiva” em português; tínhamos apenas “analfabetismo”, uma palavra negativa. Agora usamos “alfabetismo”, positivamente, mas ampliamos seu sentido para “medida do quanto uma pessoa é competente no uso social da leitura e da escrita em geral”.
Alfabetismo e analfabetismo funcional
Existe um índice que mede o quanto os brasileiros são capazes de “funcionar” socialmente como leitores. Esse índice, chamado INAF (Índice Nacional de Alfabetismo Funcional), é calculado anualmente pelo Instituto Paulo Montenegro (vinculado ao IBOPE) e classifica a população (estatisticamente) em diferentes “graus de alfabetismo funcional”. Veja quais são:
- Analfabeto: não consegue realizar tarefas simples que envolvem a leitura;
- Rudimentar: capaz de localizar uma informação explícita em textos curtos e familiares;
- Elementar: lê e compreende textos de média extensão, localiza informações mesmo que seja necessário realizar pequenas inferências;
- Intermediário: localiza informações em diversos tipos de texto, resolve problemas envolvendo elaboração e controle de etapas sucessivas, elabora sínteses;
- Proficiente: lê textos de maior complexidade, analisando e relacionando suas partes, compara e avalia informações e distingue fato de opinião.
De acordo com um estudo realizado pela equipe do INAF sobre alfabetismo e mundo do trabalho, em 2015, 27% da população brasileira era formada pelos níveis “analfabeto” e “rudimentar, enquanto cerca de 43% eram “intermediários”, e os demais, “proficientes” (cerca de 30%).
Você certamente já ouviu falar, também, em “analfabetismo digital”, certo? Pois aí está implícita exatamente a ideia de “funcionalidade” atrelada ao conceito de “alfabetismo”. E “letramento digital”, já ouviu? É semelhante, só que enfatiza o conjunto de saberes e capacidades cognitivas necessários para o uso social do computador. Já quando queremos nos referir aos usos sociais da informática em diferentes contextos, aos valores, métodos, perspectivas, formas de pensar e relações de poder implicados nesses usos, falamos em “letramentos digitais”, no plural, já que, mesmo tendo uma base comum de conhecimentos necessários, as habilidades, pressupostos e efeitos advindos da participação em um desses contextos de uso não são iguais aos de outros contextos.
Por exemplo, você diria que escrever programas como atividade profissional, ensinar crianças no clube de robótica da escola do bairro, fazer a declaração de imposto de renda on-line, postar comentários ou memes em mídias sociais, participar de campeonatos de videogame ou de hackathons aos fins de semana demandam as mesmas habilidades e atitudes, estão ancorados nos mesmos valores e têm os mesmos efeitos cognitivos e psicológicos? É claro que não! E se pensarmos nessas mesmas atividades quando estão sendo realizadas por crianças do Brasil, aposentados na Suécia ou mulheres na África? Por quem fala inglês e quem não fala? Quem vem da favela ou do bairro nobre? Certamente não! É por isso temo falar em “letramentos digitais”.
Mas e quanto aos códigos, às linguagens e às mídias utilizadas? Esses elementos também não pluralizam e especificam letramentos visuais, matemáticos, musicais, espaciais etc.? Claro que sim! É por isso que na virada do Séc. XXI, um grupo de pesquisadores anglo-saxões (THE NEW LONDON GROUP, 1996) criou o termo “multiletramentos”. “Multi” porque congrega vários modos semióticos e várias mídias. “Multi”, também, porque conecta diferentes contextos de uso das linguagens e mídias.
4 Multiletramentos
Multiletramentos é uma forma alternativa de referência aos letramentos que, como já vimos, são múltiplos em dois sentidos: como conjuntos de capacidades ligadas a mídias e linguagens específicas e como práticas sociais situadas que podem ou não compartilhar certos códigos e capacidades. Em geral, os pedagogos e linguistas aplicados consideram “letramento digital” como um letramento vinculado à informática, mas também como práticas situadas, logo, podemos falar em “letramentos digitais escolares” para designar usos da informática específicos do contexto escolar. Para podermos pensar nessas especificidades e eventualmente nos modos de como conectá-los com letramentos não-escolares valorizados pelos alunos, podemos recorrer a uma pedagogia de multiletramentos (COPE; KALANTZIS, 2000).
A pedagogia dos multiletramentos parte do pressuposto de que a aprendizagem é parte de um processo de interações colaborativas com sujeitos que dispõem de diferentes habilidades, backgrounds culturais e perspectivas sobre a vida. Assim, as aprendizagens dos letramentos específicos da comunidade, na academia e no mundo do trabalho, devem caminhar juntas e, para isso, é preciso combinar quatro princípios ou processos fundamentais: prática situada (ou experienciação4), instrução explícita (ou conceituação), enquadramento crítico (ou análise) e a prática transformada (ou aplicação) (COPE; KALANTZIS, 2000; KALANTZIS; COPE, 2005). Embora esses processos/princípios não sejam totalmente isoláveis e não precisem ser utilizados numa sequência fixa, cada um deles pode ser visto como um estágio de um ciclo contínuo.
Na prática situada (experienciação), valorizam-se os letramentos (nesse caso, habilidades) já conhecidos dos alunos; aqueles que são parte do seu cotidiano (contextualizado) e que estão vinculados às suas identidades culturais e pessoais, tecendo-se relações e aproximações dessas experiências (textos e tecnologias) com aquelas às quais os alunos não têm acesso fora da escola. Essa tessitura do conhecido e do novo deve acontecer numa zona de segurança e inteligibilidade, quer dizer, a experiência do novo deve estar suficientemente próxima do familiar para ser percebida como significativa, mas suficientemente “estranha” para tornar-se transformadora.
A instrução explícita traz para a prática situada dos alunos o conhecimento especializado, disciplinar, conceitual envolvido nas práticas focalizadas. Não é uma transmissão de definições, mas um processo no qual o aluno deve tornar-se um “conceituador ativo”, alguém que olha para a máquina, a interface, o programa, a experiência e explicita o que era tácito, generaliza o que era particular e nomeia, categoriza, formula hipóteses e teorias sobre o objeto apoiado pela instrução do professor. Aqui, da mesma forma como na prática situada, é preciso tecer conexões, nesse caso, com conceitos de outras disciplinas, conceitos informais do quotidiano e conceitos que são relevantes nos demais letramentos relacionados.
O enquadramento crítico representa o momento em que se toma distância da experiência e se busca evidenciar, coletivamente, os “porquês” e “comos” dos objetos, das experiências e dos seus efeitos. Isso envolve um tipo de análise funcional, por um lado, e, por outro, uma análise “avaliativa” das relações, interesses e pontos de vista envolvidos. O primeiro tipo de análise requer inferências, deduções, conexões lógicas e textuais que podem ser facilitadas pelos conceitos e pela tessitura das experiências. Já o segundo tipo envolve uma atitude inquisitiva de como o artefato, texto ou experiência relaciona o aluno/leitor, o construtor/autor da tecnologia/do texto, o professor, as pessoas da comunidade e assim por diante.
Finalmente, na prática transformada, importa aplicar a compreensão e o conhecimento produzido no ciclo experiência-instrução-crítica em alguma situação real ou simulada fielmente em que a validade/utilidade desses conhecimentos possa ser testada. Idealmente, a prática transformada deve propiciar uma intervenção real no mundo que faça diferença nos interesses, identidades e aspirações dos alunos.
Os papéis do multiletrado
A pedagogia dos multiletramentos preconiza que a pessoa multiletrada exerce, de forma mais ou menos integrada, em diferentes situações, quatro papéis letrados. Veja quais são:
Usuário funcional: localizar informação, decifrar códigos, usar sinais e ícones, selecionar e transitar entre diferentes dispositivos e mídias em suas atividades;
Construtor de significados: interpretar textos multimodais, identificar sua forma e propósito e conectá-los a seu conhecimento prévio.
Analista crítico: identificar posições, interesses, pontos de vista e relações de poder nos artefatos (textos, programas, dispositivos) e enquadrá-los do ponto de vista da equidade social.
Transformador: utilizar as habilidades e o conhecimento adquiridos de formas novas, diferentes das oferecidas na escola; atuar como designer, produzindo textos (multimodais) ou outros artefatos semióticos (inclusive programas, se for o caso) que têm efeitos no mundo real.
Agora que temos uma pedagogia (entre outras possíveis) de multiletramentos para nos basearmos, já podemos voltar à pergunta: qual seria, afinal, a especificidade dos letramentos digitais escolares? Tradicionalmente, temos conteúdos de informática inclusos nessa resposta: que conceitos, técnicas, softwares e procedimentos os alunos precisam aprender? Isso nos dá uma boa noção do que queremos em termos de letramentos digitais escolares e em termos de funcionalidade. Mas e os letramentos digitais escolares em relação aos demais letramentos escolares e aos letramentos do quotidiano? Quais são os fios deles que podem ser tecidos com os da prática escolar da informática?
Esses fios, é claro, estão nas práticas socioculturais do quotidiano dos alunos, em que os artefatos digitais condicionam a produção de significados, a performance de identidades, as relações de poder, a gestão das informações e assim por diante. Não precisamos pensar, apenas, em videogames e redes sociais, mas também em pagar contas pelo celular, usar o Google Maps para descobrir onde vai ser a festa, fazer um boletim de ocorrência online, procurar emprego, arranjar namorado(a) no Tinder e assim por diante.
Claro que, daí, vem uma nova pergunta: por que ensinar na escola aquilo que os alunos já fazem na vida fora da escola? Pensar letramentos digitais escolares na perspectiva de multiletramentos não significa replicar na escola o que os alunos fazem na rua, mas tecer fios dos letramentos digitais do quotidiano com os da escola, propiciando experienciações igualmente significativas. É assim que podemos alterar a percepção do aluno sobre o significado e o valor da informática na sociedade e na vida.
Esse tecido deve ser urdido com cuidado, já que o espaço escolar tem não só o poder de suscitar enquadramentos críticos construtivos, mas também pode emprestar legitimidade a coisas que talvez não devam mesmo ser legitimadas pela escola. Por exemplo: é mais do que certo que uma boa parte dos alunos do ensino médio têm acesso a pornografia digital fora da escola, mas, nem por isso, pornografia digital é uma boa escolha de experienciação.
Contudo, o professor de informática pode explicar de que forma hackers se utilizam de sites de pornografia para implantar malware e como fotos privadas podem ser roubadas em redes de WiFi públicas e utilizadas contra o(a) fotografado(a). Talvez, em seguida, fazer uma parceria com o professor de Português para discutir formas de desconfiar de possíveis pedófilos em redes sociais, a partir dos discursos utilizados; ou uma parceria com o professor de História para discutir a função social da pornografia ao longo do tempo; o professor de sociologia pode falar da relação entre prostituição, pornografia e pobreza, e assim por diante. Teríamos aí um bom mix de instrução explícita e enquadramento crítico puxando fios de letramentos “marginais” dos alunos, em vez de torná-los invisíveis.
Pode parecer estranho misturar pornografia com segurança digital, História com Informática e vídeos com textos impressos num projeto coletivo que não se sabe muito bem no que vai dar. Mas esse exemplo não só ilustra um possível uso da pedagogia dos multiletramentos num clima de novo ethos como também nos dá um “gancho” para falar de convergência e produsagem.
5 Convergência e Produsagem
A forma mais significativa pela qual a informática entra na vida dos jovens em idade escolar hoje é a da produção e consumo de mídias digitais. Isso porque a informática fornece a infraestrutura daquilo que Pierre Levy chamou de integração dos polos funcionais da comunicação midiática. Mas, como sabemos, a informática vai muito além da infraestrutura; ela atinge as relações de produção e os modos de pensar e representar o mundo. É um tempo do espírito, um processo de transformação do mundo. Das diversas dinâmicas semiótico-culturais implicadas nesse processo, pelo menos duas guardam forte ressonância com a pedagogia dos multiletramentos: convergência e produsagem.
Henry Jenkins (2009) [vídeo] chama atenção para o modo como, hoje, o convívio das mídias tradicionais com as mídias digitais, móveis e locativas, a assim chamada “convergência”, está transformando as formas de produção e consumo midiático em geral. Para o autor, a convergência não é só um processo tecnológico e/ou econômico, mas algo que ocorre também nas mentes e nos corações dos consumidores, assim como nas interações sociais entre eles. Essa é uma questão importantíssima do ponto de vista educacional, porque “alguns consumidores têm mais habilidades para participar dessa cultura emergente do que outros” (JENKINS, 2009, p. 28).
“Produsagem” é um neologismo baseado no termo em inglês produsage (BRUNS, 2008) que, por sua vez, é uma composição de production (produção) e usage (uso). A produsagem é uma faceta da convergência, aquela pela qual os papéis de autor e audiência, construtor e usuário, produtor e consumidor passam a se confundir e a se misturar, não necessariamente de forma pacífica.
Fazer produsagem seria, por exemplo, escrever verbetes na Wikipédia (a partir de livros e outras fontes confiáveis) sobre coisas que enciclopédias tradicionais, on-line ou off-line, não abordam; ou manter um canal no YouTube com coletâneas de “os dez melhores”, editadas a partir de clips capturados de filmes, programas de TV, videogames e outros produtos oficiais de mídia, sobretudo justapondo – e com isso ressignificando – elementos que as próprias mídias oficiais não colocariam juntos ou comparariam, por motivos comerciais, estéticos ou político-ideológicos.
É possível fazer produsagem de software, também, como foi o caso do Linux, e é, em menor escala, o da criação de mods, games modificados a partir de motores de games já existentes. Muitas vezes, a produsagem em informática visa a adaptar, melhorar ou refuncionalizar um programa, ou mesmo um segmento de código construído para resolver um problema “x” de tal modo que ele possa agora resolver um problema “y”, não previsto pelo produtor oficial.
Convergência e produsagem são duas dinâmicas culturais que podem favorecer um encontro entre letramentos digitais escolares e o novo ethos: eles são coletivos, descentralizados, colaborativos e, na maior parte dos casos, motivados por afeto e/ou afinidade. Isso não é fácil, porque as dinâmicas de interação nessas práticas são, muitas vezes, o oposto exato do que preconiza a tradição escolar. No entanto, o fato de que esses letramentos criam e sustentam comunidades de aprendizagem informais (JENKINS, 2009) indica que suas dinâmicas podem favorecer novos tipos e estilos do trabalho didático.
Por exemplo, na produsagem, a participação é aberta, e a avaliação é coletiva. Qualquer um pode entrar num site de fanfic e contribuir com a narrativa a partir de algum hiato ou gancho que encontre na narrativa oficial. Esse autor vai saber se escreveu bem conforme os comentários dos outros “fanfiqueiros”, ou, ainda mais, caso alguém “conecte” a narrativa à sua própria, ou então considere que a história “não respeita o universo da obra”. Tipicamente, haverá também tutoria e oferta de ajuda ou de fontes de aprendizagem disponíveis, sugeridas pelos pares.
Existe hierarquia na produsagem, assim como na escola; mas, na produsagem, ela é fluida, quem comanda e quem obedece dependem da tarefa, do dia, do equipamento, do tempo disponível, do background acadêmico, do grau de filiação afetiva com aquele trabalho e assim por diante. Da mesma forma, existe uma meritocracia ad hoc, por assim dizer: as pessoas são recompensadas individualmente por sua performance, não mediante provas e notas, mas na forma de prestígio (likes), notoriedade (seguidores), reverência (citações) e outros intangíveis. Finalmente, na produsagem, a propriedade do que foi ou está sendo feito é comum e, por isso, em vez de regras e vigilância, o que existe é uma governança coletiva (por exemplo, a comunidade de editores da Wikipédia).
O processo da produsagem é contínuo, e seus produtos, perpetuamente inacabados, palimpsésticos. Quando um grupo de amigos monta um Blog para falar de seu hobby, não se espera que ele tenha começo, meio e fim. Tampouco se espera que, dali a cinco anos, se continue falando das mesmas coisas, com os mesmos participantes, num blog com a mesma aparência e assim por diante. Diferentemente da escola, não existem trilhas fixas e pacotes delimitados de aprendizagem para quem participa. Não há unidades e currículos; há entroncamentos e playlists.
Precondições sociotécnicas da produsagem
Ambientes de produsagem não se sustentam a menos que sejam garantidas certas precondições que são constituídas de um misto de elementos técnicos e sociais. Axel Bruns (2008) lista quatro dessas precondições.
- Abordagem probabilística de resolução de problemas: Quando todos os participantes têm acesso a uma visão total do que está sendo feito, todos podem, probabilisticamente, autonomearem-se como responsáveis por resolver um problema.
- Equipotencialidade: Não há “filtros” prévios para a participação. Ao contrário, é a prática colaborativa não mediada que vai ajudar a determinar os níveis de expertise e de participação que irão se estabelecer. A autoridade não é imposta a priori, mas se estabelece no processo.
- Granularidade: para que a abordagem probabilística e a equipotencialidade surtam seus efeitos, é necessário que o trabalho seja dividido em módulos, e os módulos, em tarefas menores, que devem requerer um conjunto limitado de habilidades e um grau limitado de investimento de tempo/recursos.
- Conteúdo compartilhado: A informação e os recursos circulam livremente entre os participantes, os quais zelam por esses recursos, que são de todos, mas não pertencem a ninguém.
Quem quer trazer a produsagem para a escola precisa, é claro, garantir, também, essas precondições.
Se os conceitos de convergência e a produsagem estiverem bem claros para você, estará claro que os letramentos digitais do quotidiano que mais interessam para serem tecidos com os escolares são aqueles motivados pela afinidade e pelo afeto dos alunos, realizados coletivamente, misturando conteúdos “oficiais” com intervenções criativas e oportunizando a associação de competências e a fluidez nos papéis. Para que essas tessituras funcionem, é preciso criar espaços de “produzaprendizagem”, por assim dizer, em que o espírito da produsagem e sua dinâmica sejam tecidos com a instrução e o enquadramento crítico que geram a aprendizagem. A prática transformada almejada, nesse caso, é a prática de aprender e de ensinar informática na escola. E dela, certamente, que os alunos levarão uma série de elementos para enquadrar criticamente e transformar seus usos de informática na vida.
DEBATE: Escola e produsagem combinam?
Onde estão as principais dificuldades para tornar o ambiente da escola mais próximo daqueles ambientes de aprendizagem informal nos quais a convergência e a produsagem florescem? São técnicos? Financeiros? Políticos? Quais são os fatores técnicos e socioculturais envolvidos nessas práticas que se chocam com os da escola? Como a informática e o professor de Informática podem ajudar a compatibilizar o ambiente escolar com as precondições da produsagem?
6 Multimodalidade e transmidialidade
Como vimos, Oralidade, Letramento e Informática são tempos do espírito (LEVY, 2004) que convivem hoje numa mesma ecologia midiático-semiótico-cognitiva. E, como em qualquer ecologia, essas tecnologias intelectuais ocupam seus próprios nichos, mas, ao mesmo tempo, interagem umas com as outras, justamente por conta das práticas situadas e “circuladas” de que já falamos. Assim, embora seja importante falar bem, escrever bem e usar bem os artefatos digitais, há também que se saber como integrar essas linguagens e mídias na construção de sentidos, ou seja, há que sermos multiletrados.
O computador, é claro, tem um papel fundamental nisso, porque ele facilitou, e muito, a multimodalidade e a transmidialidade, dois fundamentos dos (multi)letramentos digitais. Antes de entrarmos na relação entre multiletramentos, multimodalidade e transmidialidade, porém, vejamos alguns conceitos fundamentais.
Primeiramente, “modos” ou “modalidades” (daí o termo “multimodalidade”) são usos distintos dos sistemas semióticos de uma comunidade, classificados pela natureza material dos signos e pelos sentidos humanos que privilegiam. Por exemplo, fala e escrita são submodalidades do modo verbal ou linguístico, um de caráter sonoro, e o outro, visual; porém, fala e escrita não são capazes de produzir todos os significados de uma cultura. Por isso, usamos, também, os modos visuais (desenho, animação, fotografia, pintura etc.), gestuais (pantomima, dança, mímica etc.), sonoros (música, ruídos, avisos sonoros etc.) e espaciais (arquitetura, paisagismo, urbanismo etc.).
Embora possamos falar em modos isoladamente, a “monomodalidade” é uma idealização. Isso porque os signos sempre têm um substrato material que comunica em alguma modalidade além daquela a que o signo pertence. Por exemplo, a fala comunica tanto pelas palavras como pelo timbre e volume da voz. Já a escrita inclui diferentes tipos gráficos ou caligrafias (modalidade visual) e utiliza o espaço em branco (parágrafos, páginas, volumes) para organizar e hierarquizar ideias.
As imagens, muitas vezes, são interpretadas segundo predicados e categorias linguísticas; os ritmos musicais são “figuras sonoras”, e assim por diante. É justamente por isso que os modos coevoluíram historicamente. Cada um deles tem o potencial para exprimir certos tipos de significados, mas não outros.
Gêneros multimodais
Uma imagem vale mesmo por mil palavras? Certamente, não podemos dizer nem que sim, nem que não, porque os modos não são totalmente comensuráveis. É exatamente por isso que é tão difícil para um computador reconhecer texto na forma de imagem e vice-versa, coisa que um humano faz tranquilamente. Veja, por exemplo, as figuras 3 e 4: dois exemplos de gêneros multimodais que testam usuários humanos e não-humanos para separá-los:
Na figura 3, somos capazes de ver um animal, enquanto o computador “vê” apenas símbolos alfanuméricos. Já na 4, vemos símbolos alfanuméricos onde o computador só pode “ver” um mapa de pontos. Isso ocorre porque a percepção humana é “programada” para encontrar padrões de forma instantânea, e não algorítmica.
A escolha de uma modalidade para a expressão material de um discurso sempre acarreta a perda de algumas possibilidades de significado e ganho de outras. Daí a eficácia das mensagens multimodais. Porém, a multiplicação das possibilidades de significação em texto multimodal pode ser improdutiva, porque temos limites cognitivos que não nos permitem relacionar tudo o que cada elemento pode significar em conjunto com todos os outros. Assim, as culturas criam gêneros multimodais, tipos relativamente estáveis de formas textuais cujas convenções nos permitem desprezar sentidos potenciais que não são pertinentes. Por exemplo, quem lê um gráfico de barras não precisa, em princípio, levar em conta de que cor são as barras, mas apenas seu tamanho. Já quem lê uma notícia de jornal precisa considerar a foto e a legenda para entender a situação noticiada.
Com a informática, que reduziu todos os modos a um mesmo substrato matemático, imaterial, multimodalidade tornou-se um campo de experimentação, principalmente entre os jovens. Todos os dias, novos candidatos a gêneros multimodais (digitais ou impressos) estão sendo criados em vários domínios – na ciência, no jornalismo e também no entretenimento. A pedagogia dos multiletramentos está aí para que os alunos aprendam a lidar com ela conscientemente e criticamente.
A multimodalidade é fundamental para a cognição e para a comunicação porque, juntando modos, podemos uma maior quantidade de significados, assim como significados mais complexos e/ou mais específicos e, ainda, administrar a sobrecarga cognitiva associada à interpretação de significados muito complexos (LEMKE, 2002). Pense, por exemplo, em quantas palavras existem na língua portuguesa para designar diferentes temperaturas. Talvez pouco mais que meia dúzia (gelado, frio, friozinho, natural, morninho, morno, quentinho, quente, fervendo, pelando), não? E mesmo que inventássemos mais palavras intermediárias, por exemplo, “morninhoinho” ou “morno-morninho-mornão-mornãozão”, o verbal se mostraria infinitamente inferior às cores ou aos números para essa tarefa. Por outro lado, como poderíamos criar uma lei ou categorizar todos os seres de uma mesma espécie com imagens, cores ou números?
Traduções intersemióticas
Embora as modalidades não sejam totalmente comensuráveis, é possível fazer traduções entre elas, desde que saibamos lidar com as perdas e ganhos de sentidos que inevitavelmente ocorrerão. Quer ver? Tente desenhar, sem usar nenhum elemento verbal (letras, algarismos, diacríticos5 ou logogramas6), o mesmo conteúdo semântico da frase “Atirei o pau no gato!”. Vai ser divertido! Quando acabar, volte e leia o comentário abaixo.
Comentário: É muito provável que você tenha desenhado um homem ou uma mulher (feito(a) de “palitinhos”) do lado esquerdo da cena, o gato do lado direito e o pau entre você e o gato, posicionado numa linha reta em relação à sua mão, formando uma espécie de vetor que aponta para o gato. Foi isso mesmo? Normalmente é assim no Ocidente. No Oriente, os elementos aparecem na ordem oposta, com o atirador na direita e o gato à esquerda. Isso é por causa da direção convencional da escrita nessas duas culturas. Mas será que você conseguiu traduzir a frase em desenho mesmo? Até aqui o desenho diz apenas que um processo material (atirar) está acontecendo, tal que um agente (homem ou mulher) e um alvo (gato) entram em relação por via de uma ação (atirar) e um mediador (o pau). Mas, como saber que o homem ou mulher é você? E como perceber que isso aconteceu no passado (“atirei” e não “estou atirando“, ou “atiro“, ou “atirarei)? Se você desenha muito bem, pode ser que tenha feito um retrato perfeito de si mesmo. Mas e se não? Talvez desenhar sua casa ao fundo? Mas e se o leitor não souber onde você mora? Ou se aconteceu em frente à sua casa, mas não foi você quem atirou? E o tempo? Como marcá-lo sem fazer referência a uma data (por escrito)?
Como você notou, o visual é ótimo para realizar alguns trabalhos semióticos, mas ruim para outros, e o mesmo vale para a escrita, a música, a fala e assim por diante. Por isso, a comunicação humana é sempre multimodal!
Enquanto os modos ou modalidades se referem a como os sentidos são construídos via sistemas de signos, chamamos de “meios” ou “mídias”7 as tecnologias para a instanciação das mensagens nos diversos modos. Seu critério de classificação é o meio técnico empregado para dar substância e mobilidade às mensagens (o corpo humano, a imprensa, o cinema, a fotografia, o computador etc.).
Em vez de propiciações, os meios ou mídias têm propriedades (facilities), que tornam possíveis certas tarefas comunicacionais, mas dificultam ou inviabilizam outras. Por exemplo, fazer um “contrato oral” não funciona tão bem quanto fazê-lo por escrito, em algum suporte durável como a argila, a madeira ou o papel (aliás, foi assim que surgiu a escrita). Simular um mundo encantado em outro planeta funciona melhor no computador do que por escrito. Escutar um jogo de futebol no rádio é mais emocionante do que assisti-lo ao vivo, dependendo do jogo, não é?
Para complicar um pouco as coisas, precisamos notar que alguns meios/mídias usam múltiplos modos (Ex.: “vídeo” = visual, verbal, sonoro e escrito), ao passo que alguns termos designam tanto um meio/mídia quanto um modo/modalidade (por exemplo: “escrita”). Mas, para os nossos propósitos aqui, essas complicações não são importantes. O importante é chamar atenção para o papel do computador (da informática, do digital) em tudo isso.
Como já vimos, a digitalização nos permitiu, de uma maneira até então inédita, praticar a multimodalidade, uma vez que, digitalizar, isto é, traduzir em dígitos binários, é possível, hoje praticamente com o mesmo custo financeiro e de tempo, para todos os modos. Por isso, o computador não é apenas uma mídia: ele é uma metamídia (LEMKE, 2010). Assim, todos os letramentos baseados em mídias ou modos isolados encontraram no computador uma ferramenta, e, na informática, um modo de pensar e agir (DJs, designers gráficos, fotógrafos, jornalistas e geógrafos, entre outros, que o digam!).
Os modos sempre andaram juntos, como já vimos, e as mídias sempre se acomodaram à presença de novas mídias em seu ecossistema. Mas a informática proveu novos modos de integração entre os modos, entre as mídias e entre as duas classes. Com isso, a informática promoveu a quebra de certas compartimentalizações ou nichos no ecossistema semiótico-cognitivo-cultural, inaugurando novos processos de produção e circulação dos textos. Podemos resumir esse processo dotando a palavra “mídia” de quatro prefixos diferentes: multi-, hiper-, inter- e trans-8.
Primeiro, o computador no permitiu conectar textos ou pedaços de textos entre si formando redes de caminhos de leitura bifurcados e multilineares, chamados hipertextos, que propiciam uma liberdade na construção das interpretações que os livros não favoreciam. Depois começamos a integrar os modos e mídias em objetos digitais chamados de multimídia, isto é, objetos em que escrita, fala, música, fotografia, animação, e assim por diante, são sobrepostos ou compostos, gerando uma mesma unidade de significação. Com a melhora das capacidades de processamento e transmissão de áudio e vídeo, o hipertexto e a multimídia se integraram na Internet, transformando o hipertexto em hipermídia. Com ela, pudemos começar a percorrer caminhos multilineares, multimodais e multimidiáticos de interpretação.
Com essa possibilidade de “atravessamento” de mídias, o diálogo entre elas se intensificou, estabelecendo o que chamamos de intermidialidade. Alguém que assiste a um programa de TV ao vivo com um smatphone nas mãos hoje pode interferir, em certa medida, no conteúdo do programa e, em retorno, a emissora pode ajustar ou mudar o programa em tempo real para reagir à interferência de quem está no sofá. Ou um escritor que teve seu livro transformado em filme pode escrever uma continuação da história em que incorpora elementos trazidos pelo filme e, em seguida, a sequência do filme fazer o mesmo em relação ao livro.
Indo um passo além da intermidialidade, temos a transmidialidade, o tipo de operação integrada em que tanto a produção quanto o consumo de determinado conteúdo midiático são distribuídos em uma série de mídias (o livro, o filme, o game, o seriado, os produtos licenciados, a atração no parque temático), de tal forma que o acesso a cada um dos elementos da operação amplia ou modifica a experiência do todo.
O lugar mais notório da transmidialidade tem sido o universo das narrativas transmídia, tais como Harry Potter ou Pokémon. Estas são guiadas, evidentemente, muito mais pela lógica econômica do entretenimento do que por considerações artísticas ou pedagógicas, porém, nota-se o fortalecimento paulatino dessas operações na política, na religião e na ciência. Por que não na educação, já que o aluno é cada vez mais alguém que “lê o mundo” não apenas integrando contribuições de diferentes mídias e modalidades que tecem uma mensagem/narrativa mais complexa, e sempre em expansão, mas também experienciando travessias modais e midiáticas no tempo e no espaço?
Voltando aos multiletramentos, para encerrar esta seção, e considerando que a multimodalidade e a transmidialidade são fundamentos dos letramentos digitais não escolares dos jovens hoje, podemos nos perguntar o que esses fundamentos acrescentam ao desafio de ensinar informática pela perspectiva dos multiletramentos.
CINECLUBE: A CHEGADA (2016)
Antes de mais nada, e isso vale para qualquer disciplina, e não apenas a informática, é necessário saber como lidar com esse potencial ampliado de significação. Não é razoável esperar que um aluno cujos letramentos são baseados nesse potencial sinta-se motivado a aprender apenas com base em letras ou números. Por outro lado, é preciso que esses alunos sejam letrados nessas outras modalidades e mídias para que, de fato, possam usar esse potencial semiótico ampliado a seu favor, em lugar de serem “capturados” por ele, segundo interesses que não levam à formação de cidadãos críticos e éticos. Como metamídia, a informática é uma ponte fundamental entre esse potencial e esses objetivos formativos.
Se não é razoável esperar que o professor de informática entenda de estética, retórica e semiótica, também seria uma pena a informática escolar fechar-se para essa oportunidade de ser percebida pelo aluno como algo significativo em sua vida aqui e, agora, algo que merece seu investimento afetivo e intelectual. Parece haver, então, dois caminhos viabilizadores aqui. Um, o mais óbvio, é o trabalho colaborativo interdisciplinar em torno da produsagem apoiada pela informática. Vamos montar uma campanha transmídia para atacar alguma questão importante para a comunidade a partir da escola? Qual é a mensagem global e que parcelas dela estarão em cada ponto da operação em rede? Que mídias digitais usar? Como usar a multimodalidade para projetar sentidos precisos e impactantes nessas mídias? Essas são tarefas “pré-informática”, mas que já devem ser pensadas contando com o uso da informática no processo.
Da mesma forma, durante a produção, o recurso da informática será chamado à função de potencializar os modos nas diferentes mídias. Com a campanha em andamento, a informática vira o canal interativo em que as pessoas reagem e interagem com os alunos, agora produtores. Não há professores na escola que possam ajudar com o manejo dos modos, aprendendo, no processo, um pouco mais sobre informática? E o contrário, não seria uma forma interessante de integração que pode gerar uma comunidade de produsagem?
A informática na escola, ao sustentar uma trama entre esses multiletramentos transmidiáticos e os letramentos escolares, pode ajudar as diferentes disciplinas a criarem “interfaces” que permitam aos alunos experimentar, na vida acadêmica, o mesmo senso de organicidade e coerência, sem fechamento ou predefinição, que experimenta o fã de Matrix ou Star Wars. Pode e deve, ainda, dar suporte para que os alunos efetivamente dominem os processos de produção, distribuição, consumo e, especialmente, crítica e remontagem dos textos multimodais e dos universos transmidiáticos do seu tempo, porque essa é a sua “mídia primária”, por assim dizer; é o “corpo” feito de servidores e cabos de fibra ótica de onde sai a sua voz e para onde convergem suas impressões sobre o mundo.
7 Informática e letramentos digitais críticos
Há cerca de dez anos, eu fiz uma pesquisa (BUZATO, 2008) cujo propósito era identificar tessituras entre letramentos escolares e não escolares, como essas que venho defendendo aqui. Um dos indícios de um tecido em construção que encontrei está nas Figuras 6 e 7.
Na figura 6, está uma atividade escolar que observei uma menina, na época com cinco anos, realizar numa sala de aula pré-escolar. Tratava-se de uma aula de “pré-alfabetização”, em que o objetivo da professora era, primeiro, introduzir a noção de “palavra”, que, antes que nos alfabetizem, simplesmente não existe para nós, e, segundo, associar o som [i] à letra “i’. Depois do exercício de identificação de grafemas, a criança deveria desenhar, numa área reservada da apostila, o que seria a cena descrita pela cantiga de onde saíra a palavra. Olhando com cuidado, pode-se notar que a criança desenhou algo como uma coluna em forma de letra “i”, à esquerda da figura espiralada no centro da imagem, que ela afirmou ser a escada da escola.
Na figura 7, aparece uma foto de tela do jogo de vestir a Barbie, objeto constitutivo de um dos letramentos que lhe dava mais prazer. A essência do jogo consistia em sobrepor camadas visuais (forma, cor, textura, brilho) em imagens representando roupas da boneca, de modo a compor um look. Apesar de não ser alfabetizada, a criança dominava os mecanismos de interação e navegação do jogo, porque os elementos textuais estilizados funcionavam como imagens, cuja função era igualmente fácil de memorizar a partir de uma lógica espacial (como no caso da letra “i” desenhada como um objeto ao lado da “escada” na figura 6).
Olhando a interface com cuidado, nota-se que, à esquerda da tela, há uma faixa de navegação que utilizava uma espécie de mapa ou planta baixa da casa/do mundo da Barbie como metáfora de navegação. Mesmo sem saber ler, mas trazendo da escola a noção de que imagens ilustram conteúdos de textos, a menina aprendeu a navegar no jogo utilizando a barra. Olhando com cuidado, no entanto, vemos que a casa da Barbie não tinha cozinha (porque mulher bonita como a Barbie deve fazer dieta), nem banheiro (porque mulheres como a Barbie não têm necessidades fisiológicas, apenas estéticas), e o mundo lá fora resumia-se ao shopping (pois brincar e consumir são as duas opções de intervenção no mundo para alguém como a Barbie).
Muito do que a gente viu neste capítulo como a nova ecologia semiótico-cognitivo-cultural que a informática ajudou a implantar e ajuda a sustentar, aparece nesse exemplo singelo. Essa criança estava se havendo com um momento em seu desenvolvimento cognitivo muito semelhante ao momento histórico em que vivemos: renegociando os lugares de mídias primárias (a voz), secundárias (as letras) e terciárias (a tela eletrônica) na construção e assimilação de discursos via textos multimodais em condições de transmidialidade voltadas para o lazer e o consumo (a boneca, o filme da boneca, o desenho animado da boneca, o jogo da boneca, as roupinhas da boneca etc.). A escola, por sua vez, ia na contramão, tentando lhe ensinar a separar as letras de sua forma visual e anexar-lhes uma forma acústica, separando funcionalmente a escrita (conhecimento) da imagem (brincadeira).
Neste capítulo, mais dez anos mais tarde, estou sugerindo que, em lugar de isolar os letramentos do verbal e da escola e dos letramentos não escolares e não verbais, devemos adotar, para o ensino de informática na escola, a perspectiva dos multiletramentos. Mas, ao contrário de agentes de letramento, tais como o jogo da Barbie, é papel primordial da escola fazer com que esses multiletramentos sejam críticos, isto é, que habilitem alguém como aquela menina a olhar para a barra de navegação no site da Barbie não como um mero recurso técnico, mas como um texto que exprime algum tipo de saber ou querer sobre o mundo. Em outras palavras, a escola precisa fomentar nos alunos os modos e a atitude que levam o leitor crítico a desmontar e remontar o texto (artefato, programa, algoritmo etc.) que se apresenta, buscando interrogar-se não apenas sobre o que se pode fazer com ele, mas o que o texto pode fazer consigo.
Modelo Australiano: multiletramentos em 3D
Uma forma interessante de conceituar “letramentos críticos” é o assim chamado Modelo 3D (DURANT; GREEN, 2000), que concebe letramentos, tanto como práticas quanto como habilidades, segundo três dimensões: a operacional, a cultural e a crítica.
As dimensões operacional e cultural dão conta, grosso modo, do que chamamos aqui de alfabetização/alfabetismo funcional e letramentos situados, respectivamente. Já a terceira dimensão é aquela que nos leva a perguntar por que a casa da Barbie é vizinha do shopping e não do parque ou da biblioteca.
O letramento crítico começa numa dimensão “técnica”, do tipo que fazemos quando selecionamos palavras e frases com cuidado para ler um contrato ou elaborar um currículo, por exemplo. Será que esse texto vai funcionar a meu favor? Será que fará o trabalho semiótico e retórico que eu desejo? A analogia com a construção de software aqui é claríssima. Mas é preciso, também, perguntar-se sobre as escolhas que poderiam ter sido feitas e não foram. Por exemplo, por que o anúncio de automóvel diz “modelos a partir de x reais”, e não “temos até um modelo de x reais”? Por que alguém que explode um trem se chama de “mártir” enquanto alguém que perde um amigo no atentado o chama de “terrorista”? Por que eu posso usar esse aplicativo/site/jogo gratuitamente, se eu sei que custa dinheiro criá-lo e mantê-lo?
O multiletrado crítico precisa ser habilitado a fazer esses dois tipos de análise sobre todos os tipos de textos contemporâneos, em todos os modos e mídias, inclusive na (meta)mídia mais poderosa de todas, o computador.
“Onde entra a informática nisso?”, você deve estar se perguntando. A resposta é a mesma de sempre: construindo espaços de experienciação, eventos, desafios, projetos em que os alunos possam também se comportar como analistas reflexivos, e não apenas como “usuários”.
Num nível mais superficial, trata-se de abordar certas armadilhas que habitam o ecossistema dos letramentos digitais não escolares. Como funcionam os vírus? O que me faz me comportar de tal forma a permitir que o vírus se ative e se reproduza? Qual a diferença entre um user e uma “pessoa”, ou entre um amigo e alguém que o site da rede social chama de meu “amigo”? Como posso saber se quem está teclando comigo é um humano ou um robô? Como as pessoas fazem para retocar suas fotos no photoshop? Como sei que fotos são retocadas e quais não são? Quando eu clico em “concordar” na hora de instalar o aplicativo, com o que eu concordo? E se eu discordar?
Claro que essas perguntas só passarão a ser significativas para os alunos se o professor souber tecê-las nos letramentos juvenis dos quais já tratamos. Do mesmo modo, essa atitude básica da “boa desconfiança” só se traduzirá em prática transformada se os alunos dispuserem do arcabouço conceitual que o professor de Informática tem para oferecer e se tiverem aprendido a fazer enquadramentos críticos também no sentido da análise funcional, que requer instrução explícita do especialista. Mas se é certo que as perguntas levam à necessidade da instrução explícita, o contrário é mais duvidoso, não é?
Para finalizar, imagine o quanto podemos potencializar a formação de alunos multiletrados críticos se os ensinarmos a fazerem perguntas que atravessem disciplinas! É claro que a Informática sempre terá mais facilidade de conversar com a Matemática e as Ciências Exatas, afinal, esta é a sua “terra natal”. Mas, há muito, a informática virou uma “cidadã do mundo”, em termos epistêmicos e didáticos.
Assim como todas as línguas e linguagens passam pela informática, agora, também a informática pode ser o entroncamento onde disciplinas de humanas, exatas e biológicas se encontram, na confecção de objetos digitais, na criação de mashups de dados afetos a fenômenos do dia a dia, na organização e integração do conhecimento e assim por diante. Caso contrário, ao mesmo tempo em que a informática se torna mais poderosa, vai também se tornar mais e mais isolada, como foi o caso da língua latina, que chegou a ser a língua franca da ciência, da filosofia e da religião, mas envelheceu e morreu sozinha nas universidades e mosteiros medievais em que era sempre usada para as mesmas coisas.
Por sorte, um certo latim sobreviveu nos seus espaços de fronteira, nas línguas românicas, inclusive a nossa, que puxaram seus fios e os trançaram com as línguas e letramentos de jovens descendentes de bárbaros, que fizeram dessa trama um modo transformado de ser, pensar e fazer no mundo novo que se abria à sua volta.
Em busca da língua franca
O sabir foi uma língua franca utilizada em toda a bacia do mediterrâneo entre o Séc. XI e o XIV. Surgida durante as cruzadas, ela se tornou a principal língua do comércio e da diplomacia entre países europeus, do Oriente Médio e do norte da África, uma função que, antes, fora do latim. O sabir era um pidgin, isto é, uma língua criada espontaneamente nos encontros improvisados de pessoas que falam línguas diferentes, mas precisam trabalhar juntas em trono de objetivos comuns ou interdependentes. Especificamente, o sabir “entrelaçou fios” das línguas românicas (português, espanhol, francês, italiano) com elementos do árabe, do turco e do grego, resultando em algo que nos soa familiar e ao mesmo tempo estranho. Veja este exemplo retirado de um diálogo em uma peça ” O burguês fidalgo”, de Molière: “Se ti saber, ti responder, se non saber, tazir, tazir” (em português “se você sabe, responda; se não sabe, cale-se”).
A origem da palavra sabir é também familiar e estranha. Ela se parece com sapere (saber), do latim; mas, na verdade, sapir vem do árabe, e quer dizer “paciência”. Dá o que pensar, não é? Um saber que não veio pronto, de cima para baixo, mas que foi construído de baixo para cima, na base da experienciação de algo não totalmente conhecido, que leva à prática transformada, da paciência para compatibilizar o familiar e o diferente por meio de um esforço de compreensão mútua. E a gente achando que “produsagem” é coisa nova!
E você, como acha que um bom professor de Informática na escola deve se posicionar? Um monge copista ou o capitão do porto onde a informática vira o novo sabir?
Resumo
Neste capítulo, você viu que a Informática corresponde a um estágio da civilização ou “tempo do espírito” que sucedeu e integrou-se a dois estágios anteriores, o da Oralidade e o do Letramento. Uma vez que o novo ecossistema semiótico-cognitivo-cultural não alija as mídias anteriores, mas as misturas e reorganiza pela metamídia informática, o ensino de Informática na escola precisa ser tão significativo na vida do aluno quanto o de Língua Portuguesa ou de Matemática. É assim que a Informática pode contribuir, na escola, para formar cidadãos capazes de fazer leituras críticas, criativas e transformadoras do mundo.
Você tomou contato com o conceito de letramento(s), primeiro, como conjuntos de habilidades cognitivas e discursivas vinculadas ao uso de determinadas mídias e modalidades semióticas e, segundo, como práticas sociais situadas, em que se usam essas diferentes mídias e modos semióticos de forma específica, segundo métodos, crenças, valores e relações de poder em diferentes comunidades.
A pedagogia que visa a construir ou ampliar capacidade e/ou a disposição sistemática do aluno em participar de forma competente em diferentes letramentos, concebidos dessas duas formas, você ficou sabendo, é chamada de (pedagogia de) multiletramentos. Sob este nome, abrigam-se princípios de aprendizagem pensados como formas de integrar as práticas de que os alunos participam fora da escola com práticas escolares e práticas de empoderamento, capazes de auxiliá-los na construção de futuros sociais e pessoais para si pela compreensão e análise crítica dos textos multimodais e configurações (hiper/inter/trans)midiáticas que medeiam suas relações sociais e com o conhecimento. Desse processo, deve emergir uma prática renovada, que permita ao aluno fazer diferença e diferente no mundo a partir do conhecimento escolar.
Você acompanhou o argumento de que, para encontrar meios de tecer os letramentos digitais escolares com os letramentos não escolares dos alunos, é importante explorar as características semióticas (multimodalidade), tecnológicas (convergência, inter e transmidialidade) e cognitivo-sociais (produsagem) dos letramentos digitais contemporâneos, e de que que tal tessitura entre letramentos só será bem sucedida se as dinâmicas de atividade, papéis de autoridade, formas de identificação e avaliação puderem ser (re)negociados rumo ao ethos da cultura digital.
Por fim, você recebeu subsídios para refletir sobre o papel da informática como um catalisador e ponto de encontro natural para multiletramentos ancorados na interdisciplinaridade na escola, e do professor da Informática como alguém que educa não apenas usuários, mas também participantes engajados do novo ecossistema semiótico-cognitivo-cultural e cidadãos críticos e reflexivos.
Leituras Recomendadas
(BUZATO, 2010)
Discute o conceito de inclusão digital a partir dos conceitos de apropriação tecnológica e novo ethos.
(KERSCH; MARQUES, 2016)
Relata um projeto de interdisciplinaridade via multiletramentos com professores do ensino fundamental que culminou na produção de um filme e grande interesse da mídia.
(BUZATO, 2017)
Discute as repercussões da “dadificação” e nos novos tipos de letramento digital crítico necessários para a formação dos cidadãos e dos professores de linguagens, tecnologias e seus códigos.
(JENKINS, 2009)
Este é o capítulo introdutório do livro de Jenkins (2009), que resume os principais aspectos da convergência como fenômeno técnico, econômico, mas principalmente cultural, com exemplos.
(LONG, 2009)
entrevista com o especialista em narrativa transmídia Geoffrey Long, como definições e distinções claras e objetivas sobre o tema, além de sugestões de como usar essas narrativas na escola.
Exercícios
- Recentemente, a câmara de vereadores de uma cidade mineira apreciou um projeto de lei que proibiria o uso de telefones celulares na escola. Isso ocorreu porque um aluno ameaçou um professor com uma faca quando o professor recolheu o celular do aluno contra a sua vontade. Veja o que disse a diretora da escola aos repórteres que cobriram o caso: “A lei pela lei não resolve. Nós precisamos ter um trabalho de conscientização, sensibilização das famílias, para que haja realmente um efetivo trabalho e exercício dessa utilização da tecnologia de uma maneira correta, de uma maneira realmente significativa”, completou a diretora.
Fonte: Projeto de lei pretende proibir uso de celulares em salas de aula em Pouso Alegre, MG.
Jornal da EPTV 1a Edição, 06/07/2017.Suponha que a diretora pedisse a você, como professor de Informática, que a ajudasse a trabalhar contra a lei, mas, ao mesmo tempo, propusesse maneiras de favorecer o “exercício dessa utilização da tecnologia de uma maneira correta, de uma maneira realmente significativa”. Que argumentos a pedagogia dos multiletramentos poderia fornecer à diretora? Que tipo de atividades/projetos você proporia? Faça uma busca sobre a cidade mencionada na notícia na Internet. Procure saber/imaginar que tipo de práticas situadas os jovens em questão valorizam, fora da escola, e leve-as em consideração. Considere, também, o tipo de uso “proibido” que os alunos fazem na escola, segundo a notícia, e como lidar com isso de modo positivo. - Em muitos países desenvolvidos, o ensino de programação de computadores está sendo integrado ao currículo geral, desde as séries do fundamental. No Brasil, essa abordagem está se popularizando em algumas situações, também, mas não há consenso sobre a melhor maneira de ensinar computação na escola. Há, basicamente, duas tendências: “aprender a programar”, em que o foco é fazer os alunos se familiarizam com as linguagens de computador, e “programar para aprender”, em que se busca exercitar, nos alunos, habilidades de pensamento analítico, resolução de problemas e criatividade, entre outras.
A partir do conteúdo do capítulo, vamos organizar um debate visando a responder às seguintes questões: (i) Qual das duas perspectivas de ensino é mais congruente com a pedagogia dos multiletramentos?; (ii) Como integrar atividades de multiletramentos, se possível, interdisciplinares, nessas duas maneiras de ensinar informática (e/ou programação)? - Crie uma atividade de letramentos digitais críticos para crianças ou adolescentes que possa ser efetivamente aplicada no ambiente escolar. Siga os passos a seguir:
- Escolha um público-alvo (série, idades, local etc.)
- Escolha um (tipo de) programa, aplicativo ou serviço popular entre esses jovens sobre o qual você acredite ser importante dirigir um olhar crítico.
- Prepare uma ou mais atividades para as quatro dimensões da pedagogia de multiletramentos, focalizando esses objetos:
- Prática situada – Promova uma situação em que o programa/serviço alvo seja experienciado a partir de um propósito que seja relevante para os alunos; desenhe a atividade de modo que o potencial do recurso possa ser explorado amplamente, por meio de situações novas ou “complicações” sucessivas da mesma situação.
-
- Instrução explícita – Planeje explicações sobre o funcionamento do programa/serviço do ponto de vista técnico, oferecendo conceitos de informática que permitam aos alunos classificá-lo e defini-lo de forma precisa e, ao mesmo tempo, estabelecer analogias com seu conhecimento de mundo, não-técnico.
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- Enquadramento crítico – Elabore questões, problemas ou desafios que levem os alunos a levantarem hipóteses sobre o funcionamento interno do programa/serviço a partir dos conceitos que você terá ensinado explicitamente. Defina, para mostrar-lhes, as opções e escolhas “técnicas” disponíveis quando da sua configuração/design. Quais são as razões técnicas e não técnicas dessas escolhas? Quais os pontos de vista envolvidos nelas. Elabore questões ou desafios ou narrativas que levem os alunos a essas respostas. Faça uma lista do que se pode fazer com o programa/serviço e o que o programa/serviço pode fazer com o usuário acrítico. Monte um jogo ou outra atividade em que os alunos cheguem a essa lista imaginando situações de uso do recurso/programa/serviço.
-
- Prática transformada – Proponha uma tarefa que demande um uso qualitativamente diferente do programa/serviço a partir das atividades anteriores. Leve os alunos a produzirem algum tipo de texto (escrito, multimídia, código fonte etc.) que materialize esse ganho de conhecimento e conscientização sobre o recurso (por exemplo, um tutorial em vídeo sobre como usar ou não usar o recurso tendo em vista determinado valor, problema ou ideal).
Notas
[1] Agradeço a Ana Luisa Marrocos Leite, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Unicamp pela ajuda na revisão linguística e pelos comentários que auxiliaram na construção deste capítulo.
[2] Nos anos 1970, o comunicólogo e cientista social Harry Pross estabeleceu uma classificação das mídias. Para ele, as representações que utilizam o próprio corpo como suporte (fala, gestos, dança, rituais, pintura corporal etc.) são mídias primárias. Mídias secundárias são aquelas que permitem a separação entre o corpo do emissor e o corpo da mensagem, mediante o uso de algum portador (livros, gravuras, moedas etc.). As mídias terciárias demandam a mediação de algum aparelho codificador-decodificador (telégrafo, rádio, fax, a televisão etc.). Em princípio, os computadores seriam mídias terciárias; porém, eles são capazes de recodificar-decodificar outras mídias terciárias, de modo que podemos pensar neles, informalmente, como “mídias quaternárias”.
[3] Transmidialidade denota o processo pelo qual um conteúdo produzido em determinada mídia (música, cinema, videogame, quadrinhos etc.) passa a ser distribuído em diversos canais, não de forma repetitiva, mas de tal modo que cada plataforma de mídia traga uma contribuição nova e importante para aquele universo temático ou ficcional, tornando-o mais complexo.
[4] No dicionário, você talvez encontre “experienciação” como sinônimo de “experimentação”. Mas, aqui, vamos utilizar a concepção psicológica da palavra. Em psicologia, a experienciação é um fluxo de percepções e sentimentos que precedem e guiam a conceituação que uma pessoa formaliza sobre determinado evento ou experiência.
[5] Diacríticos são elementos de pontuação e acentuação que não contam como letras, nem como imagens, por exemplo “:”, “)”, “~”, “?” e assim por diante.
[6] Logogramas são símbolos da escrita que representam morfemas (partes de palavras) ou palavras inteiras, por exemplo “@” (arroba) ou & “e”.
[7] Na verdade, a palavra mídia já é uma palavra no plural, um empréstimo da palavra media (pronuncia-se ‘mídia’), que, por sua vez, é o plural da palavra latina medium (meio). Contudo, no português brasileiro, a palavra emprestada, “mídia”, foi tomada como singular e, mais tarde, recebeu o plural “mídias”.
[8] Além do multi-, hiper-, inter- e trans-, temos também o que os especialistas chamam de crossmedia. Trata-se da distribuição do mesmo conteúdo em diferentes canais de mídia, sem contribuição adicional de sentido ou conhecimento por nenhum deles. É o caso de podcasts ou clipes de vídeo retirados de programas de rádio e TV disponibilizados no site da emissora, por exemplo. Não trataremos desse fenômeno aqui, pois há pouco nele que remeta ao novo ethos ou a uma perspectiva crítica dos letramentos digitais.
[9] “Retrato de Jean Miélot em seu escritório”, de Jean Le Tavernier, aproximadamente 1456. Domínio Público.
[10] “Carte de Marseille”, gravura extraída do atlas Civitates orbis terrarum de Georg Braun e Franz Hogenberg, publicado entre 1572 e 1617. Domínio público.
Referências
BOLTER, J. David; GRUSIN, Richard A. Remediation: understanding new media. Cambridge, Mass.: MIT Press, 2000.
BOYD, danah; CRAWFORD, Kate. Critical questions for big data: provocations for a cultural, technological, and scholarly phenomenon. Information, Communication & Society, v. 15, n. 5, p. 662–679, 2012.
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Sobre as autoras
(http://lattes.cnpq.br/5005283630149329)
Livre-docente em Linguística Aplicada pela UNICAMP (2007), professor visitante na Universidade da Califórnia (2015/2016). Desde 2008, é docente do Departamento de Linguística Aplicada da UNICAMP, atuando na linha de pesquisa “Linguagens e Tecnologias”. Marcelo é membro de diversos comitês editoriais nacionais e internacionais nas áreas de Estudos da Linguagem, Educação e Psicologia Social. Coordena o grupo de pesquisa LiTPos – Linguagem, Tecnologia e Pós-humanismo (www.iel.unicamp.br/litpos).
Site institucional: www.iel.unicamp.br/node/192/299
Publicações: unicamp.academia.edu/MarceloBuzato e https://www.researchgate.net/profile/Marcelo_Buzato.
E-mail: mbuzato@unicamp.br.
Como citar este capítulo
BUZATO, Marcelo El Khouri. Multiletramentos e informática na escola. In: SANTOS, Edméa O.; PIMENTEL, Mariano; SAMPAIO, Fábio F. (Org.). Informática na Educação: autoria, linguagens, multiletramentos e inclusão. Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Computação, 2021. (Série Informática na Educação, v.2) Disponível em: <https://ceie.sbc.org.br/livrodidatico/multiletramentos>