Hibridismo tecnológico e as práticas em Informática na Educação

(Eliane Schlemmer, Daniel de Queiroz Lopes, Luciana Backes)



Fonte: NYC Media Lab em Flickr

Como a ideia de um hibridismo tecnológico pode contribuir para/com os processos educacionais?[1]

Durante as três últimas décadas, o desenvolvimento tecnológico, particularmente na área da microinformática, tem produzido profundas mudanças na sociedade, mudanças que contribuem para acelerar ainda mais o desenvolvimento tecnológico. Tal desenvolvimento tem sido entendido por diversos autores como um fenômeno sociotécnico, exigindo, portanto, que seja compreendido em suas dimensões técnica, simbólica e social. No atual contexto, já não se trata mais de compreender a relação indivíduo-computador na sua singularidade, pois essa relação é passada por uma complexa rede de pessoas e coisas sustentada por tecnologias diversas, configurando os espaços de convivência de maneira híbrida. A partir dessa rede, fundamentamos a ideia de hibridismo tecnológico. No sentido de compreender tais mudanças em relação ao contexto educacional, fundamentados por distintas abordagens teóricas, diversos estudos voltados ao tema da informática na educação têm sido conduzidos por diferentes grupos de pesquisa no Brasil e no exterior. Desde o surgimento dos primeiros computadores pessoais até os atuais dispositivos móveis conectados à internet, emergem as questões sobre: como tais tecnologias, particularmente as digitais, têm sido apropriadas por estudantes e educadores no contexto das escolas? Como a ideia de hibridismo tecnológico e digital pode contribuir para as aprendizagens e a socialização em diferentes contextos educacionais? Quais os desafios a serem superados no que se refere à relação entre uma educação emancipadora e a ideia de uma cultura digital emergente? O presente capítulo irá abordar o tema do hibridismo tecnológico e a informática na educação com base em leituras e resultados de estudos conduzidos pelos grupos e projetos de pesquisa que coordenamos e dos quais participamos. A ideia é situar e convidar você para uma apropriação sobre o tema a partir de seus fundamentos teóricos e técnicos numa perspectiva multirreferencial e crítica.

Objetivos Educacionais:

  • Compreender que técnica e cultura são fenômenos imbricados à própria noção de ser humano e de sociedade, e que a atividade técnica é atividade simbólica.
  • Compreender a ideia de hibridismo tecnológico como fenômeno sociotécnico característico da cibercultura;
  • Refletir sobre o significado e a perspectiva do hibridismo no contexto contemporâneo;
  • Identificar as tecnologias que estão diretamente atreladas ao conceito de hibridismo tecnológico e digital;
  • Compreender como a ideia de hibridismo tecnológico e digital pode contribuir para as aprendizagens e a socialização em diferentes contextos educacionais.

Índice:

1 A TECNOLOGIA E A CULTURA: CONTEXTUALIZANDO A NOÇÃO BÁSICA DE HIBRIDISMO

De maneira geral, a técnica é entendida a partir de um ponto de vista utilitário, pragmático, diretamente aplicável a uma realidade ou contexto. De fato, diante de tantos recursos tecnológicos e instrumentos produzidos pelo ser humano ao longo de sua história, é compreensível que se dê tanta ênfase aos produtos e menos aos processos simbólicos que envolvem o seu desenvolvimento e utilização. Para que se possa superar essa visão utilitarista, é necessário compreender o desenvolvimento tecnológico como fenômeno imbricado ao próprio desenvolvimento sociocultural.

Atividade simbólica

Em termos gerais, o conceito de atividade simbólica toma por base o conceito de símbolo na sua perspectiva psicológica. Para a psicologia, a função simbólica diz respeito à capacidade do ser humano de fazer referência às coisas (pessoas, objetos, fatos) por meio de imagens, símbolos e signos. A linguagem e seus signos, por exemplo, constituem um dos modos de se fazer referência às coisas de forma mediada. Assim, escrever, contar uma história, desenhar, imitar, encenar, etc. podem ser consideradas atividades simbólicas, pois fazem referência às coisas sem necessariamente se confundirem com elas. A atividade simbólica, portanto, tem papel fundamental para o desenvolvimento social e cognitivo do ser humano, já que é caminho necessário a diversas aprendizagens.

As tecnologias digitais da informação e da comunicação (TDICs) têm produzido transformações importantes em diversos campos da ciência e das artes. Apesar de a maior parte das discussões em torno da técnica e da tecnologia centrar-se nos desenvolvimentos científicos mais recentes, a Antropologia tem revelado diversos vestígios da ação humana que indicam a estreita relação entre a técnica e a cultura. Seria possível, assim, pensar a atividade técnica como fruto de atividade simbólica?

Se tomarmos como exemplo o desenvolvimento da automação e da cibernética, é possível analisarmos as relações entre técnica e atividade simbólica a partir das metáforas do mundo natural e social. A ideia dos mecanismos autômatos pode ser evidenciada já nas invenções dos matemáticos da antiga Grécia, como Arquitas, idealizador do parafuso e da roldana, e Aristóteles, que imaginou uma sociedade rodeada de mecanismos automáticos. De fato, a ideia de autômatos sempre fascinou os filósofos da Antiguidade, seja através da Matemática e da Mecânica, seja na forma de uma tecnomitologia[2] (NASCIMENTO, 2006). Ao longo da história, é possível identificar que o interesse por mecanismos autômatos esteve relacionado tanto ao sentido de realizar tarefas e suprimir o trabalho humano quanto ao sentido de representar organismos vivos[3] ou contar histórias[4].

Arte e técnica

A origem da arte e da técnica possui uma relação bastante estreita. Segundo Giannetti (2006), na Antiguidade clássica eram utilizados dois termos para distinguir o que hoje se atribui ao amplo conceito de arte. Tékne era o termo utilizado para designar as manufaturas, e nele se incluíam a escultura e a pintura, e o que hoje se define como artesanato. A dança, a música e a poesia não se incluíam nesse conceito, sendo designadas a partir do termo mousiké. Assim, o primeiro dizia respeito ao que era produzido manualmente, exigia o domínio de uma técnica e ferramentas de produção. O segundo, por sua vez, era considerado uma categoria superior, algo de inspiração divina. Em contrapartida, não havia uma separação entre as disciplinas científicas e artísticas, e “ao mesmo campo da música pertenciam tanto a gramática, a retórica e a dialética, como a matemática e a astronomia” (GIANNETTI, 2006, p. 19).

É possível afirmar, de certa forma, que a construção desses mecanismos automáticos serviu para testar e pôr em prática algumas teorias formuladas acerca do movimento e da mecânica. Ao mesmo tempo, servia de ensaio para a produção de novas ideias e invenções das comunidades científicas, para o comércio, para o entretenimento e, infelizmente, para a guerra. Essa evolução tecnológica representada pelas invenções é bem evidente quando se analisa o desenvolvimento das primeiras ideias computacionais, principalmente nas ideias contidas no Tear de Jacquard, em 1801, na Máquina Diferencial de Babbage, de 1822, e nas máquinas construídas por Turing, de 1936.

Quando o escritor tcheco Karel Capek, em 1921, apresentou, pela primeira vez, o termo robot, na sua peça teatral RUR, revelou uma concepção ou aspiração em relação aos mecanismos autômatos já apontada na Grécia antiga. Ao tomar o sentido da palavra robota, que em sua língua significa trabalho forçado, sintetizou a aspiração humana de ter máquinas a seu serviço. Posteriormente, a literatura, o cinema e outras artes exploraram bastante a imagem de robôs executando tarefas humanas, e, em alguns casos, tornando-se autônomos em relação ao homem, capazes de se autoproduzir (autopoiéticos).
Também é possível analisar o desenvolvimento tecnológico sob o ponto de vista da relação entre ser humano, natureza e técnica. Lemos (1997, n. p.) afirma:

O fenômeno técnico é a primeira característica do fenômeno humano, já que a antropogênese coincide (de forma simbiótica) com a tecnogênese. O homem não pode ser definido, antropológica e socialmente, sem a dimensão da técnica. […] a formação do córtex, da técnica e da linguagem estão imbricadas numa coevolução zoológica da espécie humana. Como a técnica está presente no surgimento do homem e da linguagem, toda atividade técnica é uma atividade simbólica.

Essa relação simbiótica entre o ser humano e a técnica revela-se não só na transformação da natureza e do mundo, mas na transformação do próprio ser humano. Lemos (1997), com base em autores como Moscovici e Stiegler, propõe que se supere a dicotomia entre o artificial e o natural. Afirma que a cultura emergente resulta de um processo de artificialização da natureza, no sentido de que tudo que é produzido pelo ser humano e que não pode se autorreproduzir é artificial. Assim, o desenvolvimento tecnológico pode ser considerado como produto de atividade absolutamente natural como qualquer outra atividade simbólica.

A partir dessas premissas básicas sobre a técnica e a cultura, podemos compreender melhor que o surgimento das TDICs não é um fenômeno isolado e apenas de ordem técnica ou industrial, mas sim imbricado a uma série de acontecimentos de ordem diversa (social, acadêmico, científico, econômico etc.) e inter-relacionados. Dessa forma, ao mesmo tempo em que são produto do desenvolvimento tecnocientífico das últimas décadas, as TDICs também são responsáveis pelo surgimento da cibercultura. A noção básica de hibridismo, assim, necessariamente passa pelo entendimento das condições de possibilidade do seu surgimento dentro do contexto sociocultural atual.

2 A CIBERCULTURA COMO CONDIÇÃO PARA O HIBRIDISMO TECNOLÓGICO E DIGITAL

O que consideramos evidente a partir do que foi apresentado até este momento é que não se pode negar facilmente a ideia de que somos inexoravelmente influenciados pelos artefatos culturais de nossa época e lugar. E por essa razão, ao invés de propor que haja um domínio de uma cultura sobre outra, o que gostaríamos de ressaltar é que não é possível efetuar generalizações no âmbito da discussão sobre movimentos socioculturais sem correr o risco de confundir a hegemonia de um padrão cultural com um suposto estado inevitável de natureza sobre o qual todos nos dobramos. Os estudos antropológicos sobre o movimento civilizatório estão repletos de casos que denotam, por exemplo, como a perspectiva eurocêntrica e colonialista afetou a vida de quem vivia fora desse eixo, e em grande parte das vezes, sob a égide da dominação e da exploração. Assim, é preciso situar a discussão envolvendo o tema da cibercultura no seu devido espaço e tempo, e isso significa considerar também os artefatos culturais que permeiam determinados contextos socioculturais sem, no entanto, afirmar que tais artefatos estejam ou pertençam a todos os contextos. Sim, há lugares aos quais a cibercultura não chegou, mas cujas tecnologias, mesmo analógicas, não são menos híbridas.

A esse respeito, Lévy (2004), ao analisar o desenvolvimento tecnológico e a cultura, propõe que as formas de pensar encontram-se profundamente moldadas por dispositivos materiais e coletivos sociotécnicos. Com o termo ecologia cognitiva, ele defende “a ideia de um coletivo pensante homens-coisas, coletivo dinâmico povoado por singularidades atuantes e subjetividades mutantes” (LÉVY, 2004, p. 11). No mesmo sentido, ele lança a ideia de que a sociedade pode ser considerada como um grande hipertexto ou uma megarrede cognitiva, móvel, de vários formatos e vias, na qual indivíduos participam conectados a uma rede comum, mas que, entretanto, possuem apenas uma visão parcial e deformada por inúmeras traduções e interpretações. Para o autor, esses indivíduos compõem o que seriam processos locais, singulares, subjetivos, a cada momento injetando movimento no que seria o grande hipertexto social: a cultura. O autor acrescenta que o estado das técnicas influencia diretamente sobre a topologia dessa megarrede cognitiva, sobre os tipos de relação nela executados, sobre os modos de associação, as velocidades de transformação e circulação das imagens, sempre numa metamorfose constante.

Tal análise fica mais clara quando Lévy estabelece uma analogia entre o modelo da termodinâmica, analisado por Michel Serres (1977; apud LÉVY, 2004), e o modelo computacional. Da mesma forma que a criação da máquina a vapor proporcionou a elaboração de um conceito de força (Horse Power) – definida por uma relação entre tempo e espaço –, Lévy tenta mostrar que o computador se tornou hoje um desses dispositivos técnicos pelos quais percebemos o mundo. Isso não apenas num plano empírico (como nos cálculos de distâncias astronômicas), mas também num plano transcendental. Ele afirma que cada vez mais concebemos a sociedade, os seres vivos, ou os processos cognitivos através de uma matriz de leitura informática. Da mesma forma como o telégrafo e o telefone serviram para se pensar a comunicação de uma forma geral, e em conjunto com a aceleração dos meios de transporte produziu a ressignificação dos espaços e fronteiras, ele afirma que a experiência pode ser estruturada pelo computador. Assim, os produtos da técnica moderna são importantes fontes de imaginário, entidades que participam plenamente da instituição de mundos percebidos.

Cyberspace, cyberpunk, cyborgue, termos que saíram da ficção para povoar o imaginário de pessoas que pensam acerca da automação do orgânico e do inorgânico. Quais seriam os limites da relação entre o humano e as máquinas? Num sentido mais amplo, a quais níveis de interdependência entre o ser humano e a tecnologia podemos chegar? Não se apresse em considerar que tal interdependência não exista ou que seja mínima. Óculos, lentes de contato, relógios, próteses auditivas e auriculares, martelo, machadinha, arco e flecha, pincel, celulares, computadores, canetas esferográficas, automóveis, bicicletas, entre uma infinidade de outros artefatos que nos rodeiam, são claros indicadores de que a vida humana se confunde com a própria técnica. Alguns autores afirmam de forma radical que não é possível pensar o humano sem levar em consideração a técnica e o seu produto – as tecnologias. Dessa forma, precisar em que momento surge a cibercultura não é tarefa simples. O que podemos afirmar é que a ideia de movimento da cibercultura nos parece mais apropriada, pois se insere num tempo mais amplo que o do surgimento dos computadores e da informática.

CINECLUBE: Matrix

Disponível no YouTube

Cedo ou tarde, você vai aprender, assim como eu aprendi, que existe uma diferença entre conhecer o caminho e trilhar o caminho.
(Morpheus, filme Matrix, 1999)

O ciberespaço
O surgimento do termo ciberespaço (cyberspace) é atribuído à obra de Willian Gibson, a partir do romance Neuromancer, de 1984. Gibson inicia um novo gênero na literatura de ficção científica chamado de cyberpunk novel, tendo inspirado diversas outras obras e a famosa trilogia Matrix, dos irmãos Wachowski, em 1999.

A ficção cyberpunk trabalha com as inovações tecnológicas que provocam mudanças significativas na forma como os humanos se orientam em relação ao mundo – ou mesmo no mundo em que habitam, seja virtual ou real. Embora a ficção científica seja popularmente compreendida como sendo sobre exploração do espaço e de outros planetas, o cyberpunk altera esse tema em favor da imaginação de um espaço “faux” de banco de dados e redes – sistemas de informação, comunicação e mídia – em nosso mundo (MCCALLUM, 2000, p. 349-350).

Sobre a cibercultura, Lemos (2009b) afirma:

O que a meu ver alterou substancialmente a nossa relação com os objetos técnicos na atualidade é que pela primeira vez, talvez, a gente tenha a dimensão técnica, o digital, colado à dimensão da comunicação. São tecnologias não apenas da transformação material e energética do mundo, mas que permitem a transformação comunicativa, política, social e cultural efetivamente. Porque nós conseguimos transitar informação, bens simbólicos, não materiais, de uma maneira inédita na história da humanidade (p. 136).

Espaço “Faux”

Faux” é geralmente traduzido como artificial, falso. No entanto, no contexto da discussão proposta por McCallum (2000), “espaço ‘faux’” carrega o sentido do “espaço virtual”, ou seja, não como um espaço que se opõe ao real, mas sim como um fluxo de informações (imagens) que se atualizam na interação com humanos e objetos. Essa compreensão é fundamental para o entendimento da web como um espaço simbólico constituído por algoritmos e suas respectivas semânticas.

Nesse sentido, além da microinformática – que fez eclodir a produção em larga escala de computadores pessoais (PC) –, o surgimento das redes digitais e a internet são outros elementos que demarcam uma fronteira nítida em relação ao modo como as pessoas – as conectadas – passam a atuar. Atualmente, estar ligado – plugado – parece ser um imperativo para a participação e a sociabilidade, o que é um forte indicador de que esse movimento cultural se amplia em diversas camadas sociais e extrapola a questão geracional, já que não são apenas as crianças e jovens que atuam no ciberespaço.
Em termos mais gerais, se pode chegar a diversas definições, hoje, sobre a cibercultura, mas se tem como consenso que se trata de um fenômeno sociotécnico.

A cibercultura é a relação entre as tecnologias de comunicação, informação e a cultura, emergentes a partir da convergência informatização/telecomunicação na década de 1970. Trata-se de uma nova relação entre tecnologias e a sociabilidade, configurando a cultura contemporânea. A cibercultura envolve hackers, ativistas políticos e da comunicação, artistas etc. que buscam novas formas de se sociabilizar através das tecnologias digitais e de rede (AÇÃO CULTURA DIGITAL, 2009, n. p.).

No entanto, é um tanto quanto limitado pensar o ciberespaço apenas como um meio através do qual pessoas se comunicam e interagem. Trata-se de uma modalidade de existência que define novos hábitos, olhares, prazeres e realizações. As mídias sociais que têm capturado tantos usuários já contabilizam uma infinidade de material publicado na forma de imagens, sons, texto. Não basta para o cibernauta olhar, é preciso compartilhar o que se olha, tornar pública a própria experiência, ainda que para um círculo de amigos ou seguidores. São comunidades de leitores-seguidores que se preocupam com a manutenção e captura da atenção do outro, esperando sua aprovação – curtir, passar adiante, reproduzir, mixar, copiar, colar, se associar etc. Nesse sentido, esse é um tempo que demarca mudanças que incorporam de forma radical determinados modos de se relacionar – com pessoas e com o próprio conhecimento – que exigem reflexões profundas no campo da educação e do desenvolvimento humano e da inteligência.

Com base no que foi apresentado até o momento, é possível compreender que a noção básica de hibridismo passa pela compreensão da própria cultura como resultado do híbrido humano-coisas, ou seja, é necessário compreender a cultura como fenômeno da relação entre humanos e seus artefatos, seus objetos, suas tecnologias, seus corpos. A técnica, compreendida como atividade simbólica, se insere nesse campo conceitual como função da hibridização sociocultural, e essa compreensão é fundamental para o entendimento do hibridismo tecnológico e da sua relação com a área da informática na educação.

DEBATE

O presente texto não problematiza a ideia de hibridismo cultural em relação ao fenômeno da globalização, apesar de considerarmos um tema essencial para uma análise crítica do fenômeno. Para aprofundar esse tema, sugerimos o texto de Rogério Haesbaert “Hibridismo cultural, ‘antropofagia’ identitária e transterritorialidade”, disponível no Scielo Books.

3 HIBRIDISMO TECNOLÓGICO E DIGITAL NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO

Vivemos no nosso cotidiano mudanças rápidas e radicais que interferem no conviver com as outras pessoas. Quais são as mudanças que você evidencia no seu conviver?

Os educadores brasileiros Backes, Schlemmer e Ratto (2017) chamam a nossa atenção para o aparelho celular com seu conjunto de aplicativos. Telefonamos para alguém, em seguida enviamos um arquivo que esse alguém solicitou, conversamos com o colega de trabalho que está ao lado e nos mostra no site da web um artigo que trata desse mesmo assunto. Em seguida, publicamos esse artigo na mídia social e marcamos a pessoa com quem falamos ao telefone. Os “amigos” da nossa rede social compartilham esse artigo e interagem por meio de comentários, que podem ser ainda discutidos em diferentes grupos do Whatsapp. Assim, “as tecnologias digitais, como expressão desse viver e conviver cotidiano, normalmente são utilizadas de forma articulada, configurando o hibridismo entre as tecnologias, ou seja, um conjunto, uma mistura e uma articulação” (BACKES; SCHLEMMER; RATTO, 2017, p. 1203).

ATIVIDADE: De que forma você interage com e por meio das TDICs no seu cotidiano?

No texto citamos o exemplo do aparelho celular com seu conjunto de aplicativos, através do qual é possível perceber a articulação, integração e relação entre os diferentes aplicativos, assim como com o espaço físico (geográfico). Você identifica esse hibridismo no seu cotidiano? Descreva uma situação vivenciada por você.

Você já deve ter percebido que essa articulação, integração e relação, tratada como hibridismo tecnológico, ocorre ordinariamente, por meio de links e de artefatos que possibilitam a mobilidade das pessoas entre as diferentes TDICs, durante a sua utilização, dando a impressão de uma única tecnologia, de forma que as ações só se completam nesse conjunto, afirmam Backes, Schlemmer e Ratto (2017).

Precisamos aprofundar… O que exatamente representa o hibridismo tecnológico e digital?

Hibridismo parece ser a palavra do momento!

Ouvimos muito falar em plantas e animais híbridos, principalmente porque esse é um conceito muito explorado pelas ciências biológicas, segundo o antropólogo argentino Néstor García Canclini (2006). Para o autor, o termo tem sua origem justamente nas ciências biológicas, significando cruzamento de diferentes espécies, chamando a atenção ao aspecto estéril desse cruzamento. Nesse sentido, o conceito passa a ser ressignificado no contexto das ciências sociais. A partir dessa ressignificação, conforme o autor, atualmente temos culturas híbridas, ou seja, intersecções entre as culturas a fim de evidenciar os cruzamentos, fusões, conflitos e contradições. Assim, “[…] entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existem de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (GARCÍA CANCLINI, 2006, p. XIX).

Em propagandas veiculadas nos meios de comunicação de massa, encontramos automóveis híbridos, pneus híbridos, máquinas fotográficas híbridas, enfim uma gama de produtos vinculados a um adjetivo que apresenta significados variados. Esse emaranhado de hibridização, para o antropólogo francês Bruno Latour (1991), é uma constatação de que a realidade nunca foi pura. Para o autor, quando pensamos em nós mesmos (sujeitos), estamos constantemente em tensão com os objetos, em mediação, entrelaçados por meio de tramas que se configuram em redes flexíveis, históricas e empíricas. Assim, a cada distinção estabelecida, geram confusões que criam misturas. Como falar do céu, sem contemplar a terra? Como entender o global, sem olhar para o local? Conforme o geógrafo brasileiro Milton Santos (2006), atualmente não é mais possível distinguir onde termina a obra da natureza e onde começa a obra do homem, ou ainda, indicar onde termina o técnico e onde começa o social. Logo, para o autor, a cada evento, tudo se recria.

Ao vocábulo “hibridismo”, articulamos os adjetivos tecnológico e digital, considerando o contexto cibercultural. Assim, os seres humanos utilizam as diferentes TDICs no seu cotidiano, compondo e recompondo o que podemos chamar de “hibridismo tecnológico e digital”. Segundo Backes (2011; 2015), o hibridismo tecnológico e digital é a configuração de um conjunto de TDICs que possibilitam ação, relação, interação e compartilhamento das representações dos seres humanos; permitem configurar espaços próprios e particulares de cada grupo social – pois os seres humanos estão em congruência com o meio, conforme propõem Maturana e Varela (2002); oferecem recursos que potencializam a coordenação das coordenações das ações – segundo Maturana e Varela (2002) o ser humano compreende a ação do outro e lhe atribui significado. Assim, essa configuração ocorre nas ações indissociáveis, solidárias e cooperativas, por meio das diferentes TDICs.

Vamos falar um pouco mais sobre esse humano que se relaciona de maneira híbrida para compreender o hibridismo tecnológico e digital?

O viver e o viver compartilhado com o outro, ou seja, o conviver no mundo contemporâneo, segundo o sociólogo francês Michel Maffesoli (2012), implica um “enraizamento dinâmico”, caracterizado pela necessidade: de compartilhar as emoções, de viver juntos (origem), de produzir e autoproduzir e de desenvolver tecnologias (futuro). Assim, o “enraizamento dinâmico”, a origem e o futuro, parece paradoxal na perspectiva do progresso, mas se torna viável na perspectiva do ingresso (latin) como um convite para “entrar-se neste mundo” (p. 83). Então, não há o fim do arcaico (origem), para iniciar o tecnológico (futuro), como anunciado na lógica progressista, mas uma relação complexa e de continuidade na sinergia entre o arcaico e o desenvolvimento tecnológico.

Parece complicado… Então vamos estabelecer a metáfora da Espiral conforme propõe Maffesoli (2005).

Mapa mental da metáfora da Espiral
Fonte: Criado por Backes (2017) no software Coggle.

A espiral se configura por meio do fluxo estabelecido pelas linhas azuis, atravessada pelos elementos destacados nas linhas coloridas. Assim, percebemos os seres humanos e a técnica numa relação complexa, ou seja, em interação, contradição, modificação, resultando num movimento em espiral. Na compreensão de Maffesoli (2005, p. 136-137, tradução nossa),

[…] com relação à internet, eu ouço falar em críticas que se baseiam no fato de que as grandes categorias que estruturam as redes são fluidas. Mas a vida, nunca fixa. Então, para mim, essas críticas dogmáticas, que pré-definiram a ordem social e uma vida racionalmente enquadrada, desmascaram-se a si mesmas. Minha sensibilidade teórica me leva a observar com generosidade o que nasce como as expressões da vida. E se acha que esse vitalismo ou essa vitalidade se apoiam, com efeito, no desenvolvimento tecnológico[5].

Então, o que consideramos importante nessa complexidade? A coexistência entre: real físico, geográfico e real tecnológico e digital virtual; ser humano e máquina; passado, presente e futuro; entre outros aspectos, como pervasivo, nomadismo, sintético, natural e artificial. Assim, para além dessa coexistência, há a articulação, integração e relação entre todos esses elementos, de tal forma que um não pode ser explicado sem o outro, segundo Latour (1991). No mesmo sentido, Backes, Schlemmer e Ratto (2017) referem-se a esse híbrido não como uma criação ou construção puramente teórica, e sim coengendrada  a partir da observação do cotidiano na constante redefinição do espaço habitado e das pessoas. Essa redefinição, conforme Latour (1991), está na associação, na conexão, no agrupamento entre o espaço e as pessoas, a fim de reconfigurar o mundo que coabitamos com outros seres.

Em resumo, o hibridismo tecnológico emerge desse cotidiano. Esse fato ocorre porque as diferentes TDICs possibilitam a ação e interação dos seres humanos de diversas maneiras e, a partir de diferentes linguagens, contemplando os mesmos assuntos, temáticas e comentários. Dessa forma, criamos e recriamos um contexto híbrido, ou seja, com interfaces, linguagens, tecnologias variadas conforme a configuração dada pelos usuários. Logo, a composição do hibridismo tecnológico e digital é própria e particular a cada grupo que configura o seu viver e conviver nesses ciberespaços, pois emerge do cotidiano.

Teoria da Complexidade

A palavra “complexo”, utilizada em várias situações do cotidiano, normalmente tem a conotação de difícil, negativo, indesejado. Aos poucos ela vem assumindo outros significados. Para o sociólogo francês Edgar Morin (2011), complexo é o que não podemos resumir em uma palavra-chave, reduzir em uma ideia ou simplificar por meio de leis. “A complexidade é uma palavra-problema e não uma palavra-chave” (p. 6). Assim, cada vez mais, a palavra complexo está se desvinculando do sentido comum (complicação, confusão), para assumir um sentido mais emergente. Ou seja, o complexo está em relacionar o que é contraditório, antagônico, diferente e diverso.

Pensamos em “multicultural”, na cultura que é única e múltipla ao mesmo tempo; na sinergia entre o arcaico e o contemporâneo; nas comunidades que se organizam pelas mídias sociais; no híbrido que há entre natureza e cultura, não conseguimos mais diferenciar uma da outra ao olharmos uma paisagem; entre outros exemplos que podemos citar. Destacamos alguns aspectos abordados por Morin (2011) para discutir a Teoria da Complexidade, são eles:

  1. O paradigma simplificador;
  2. Ordem e desordem no universo;
  3. Auto-organização;
  4. Autonomia;
  5. Razão, racionalidade, racionalização;
  6. O todo está na parte que está no todo

Para ilustrar a Teoria da Complexidade, trazemos a obra de arte Manequins (1986), do pintor, gravurista e professor, gaúcho Iberê Camargo. Manequins é uma das obras do conjunto de serigrafias que tem como tema principal a figura humana. Conforme Godoy (2009), foi o assunto que adquiriu maior recorrência nas obras produzidas por Iberê Camargo nos seus últimos anos de vida. Na cidade de Porto Alegre, temos a Fundação Iberê Camargo (FIC), com um acervo incrível do artista!

Na obra de Iberê Camargo, podemos identificar características da Teoria da Complexidade, de maneira metafórica, como, por exemplo, a relação e a articulação entre o manequim (ser inanimado) e o ser humano (ser vivo). Conforme Godoy (2009), mesmo que o artista tenha sido influenciado por variadas correntes estéticas, é difícil identificar que ele tenha se filiado a alguma em específico. Ainda conforme o autor, Iberê Camargo realizou suas obras com muito rigor técnico, além de imprimir suas particularidades, mesmo que as figuras de manequins pareçam ter sido esboçadas de modo livre, como se tivessem sido feitas rapidamente.

Vamos avançar um pouco mais sobre as reflexões no contexto contemporâneo, contemplando pontualmente o contexto educacional. Backes (2015) destaca que em universidades brasileiras encontramos estudantes que utilizam mídias sociais para criarem grupo de discussão sobre o conteúdo desenvolvido em seus cursos, ao mesmo tempo em que utilizam os ambientes virtuais de aprendizagem (AVAs), aplicativos de comunicação instantânea, entre outras TDICs disponíveis para uso específico educativo ou não. Essa composição do hibridismo tecnológico e digital é percebida nas universidades porque no cotidiano desses estudantes isso já acontece há mais tempo.

A Educação na contemporaneidade implica considerar os processos de ensinar e de aprender, na coexistência entre os espaços geograficamente localizados e o ciberespaço, e compreender que as rápidas mudanças ocorrem de maneira determinante e determinada entre sociedade, educação e TDICs. Ao mesmo tempo em que essas tecnologias propiciam transformações na educação, a educação provoca a criação de novas TDICs. Segundo Santos (2006, p. 39), “é assim que o espaço encontra a sua dinâmica e se transforma”. Nesse movimento, surge a tecnologia-conceito Espaço de Convivência Digital Virtual (ECODI) sistematizada por Schlemmer et al. (2006); Schlemmer (2008, 2010, 2013); Backes (2011, 2013, 2015); Schlemmer e Backes (2015) e ampliada por meio das  pesquisas desenvolvidas pelo GPe-dU Unisinos/CNPq, para a tecnologia-conceito Espaço de Convivência Híbrido, Multimodal, Pervasivo e Ubíquo (ECHIM).

Para Schlemmer, Backes e La Rocca (2016), o híbrido é compreendido quanto à natureza dos espaços (geográfico, virtual e digital), quanto à presença (física e digital), quanto às tecnologias (analógicas e digitais e analógico-digitais) e quanto à cultura (senso comum, erudita, tribais, analógicas, digitais, gamer, maker, entre outras). Para os autores, a multimodalidade confere um caráter de continuidade e prolongamento
dessas ações e interações no tempo e no espaço. Para tanto, é fundamental pensar nessa educação na contemporaneidade.

4 HIBRIDISMO TECNOLÓGICO E DIGITAL EM CONTEXTOS EDUCACIONAIS OU OS ESPAÇOS DE CONVIVÊNCIA HÍBRIDOS E MULTIMODAIS

Agora que compreendemos um pouco mais sobre a relação entre tecnologia e cultura, bem como sobre o hibridismo tecnológico e digital no contexto contemporâneo, vamos compreender como o conceito de hibridismo tecnológico e digital vem se constituindo e se desenvolvendo ao longo das pesquisas, vinculado aos processos de ensino e de aprendizagem.

O conceito de hibridismo tecnológico e digital surge associado ao conceito de Espaço de Convivência Digital Virtual – ECODI, construído em 2006 no contexto das pesquisas desenvolvidas no Grupo de Pesquisa Educação Digital – GPedU Unisinos/CNPq e vem sendo aprofundado no decorrer dos anos em pesquisas desenvolvidas desde 1998, vinculadas à apropriação de diferentes tecnologias nos processos de ensino e aprendizagem. Inicialmente e até meados de 2013 a compreensão desse conceito se fundamentava numa abordagem epistemológica interacionista/construtivista/sistêmica. Essa tradição epistemológica é antropocêntrica (LATOUR, 1994; 2012); a interação supõe a preexistência dos dois termos (organismo e meio) que interagem; e o conhecimento é compreendido como representação, não mais de um mundo externo ao sujeito, como acreditavam os empiristas, cognitivistas e conexionistas, mas como representação interna ao sujeito, portanto, significação (KASTRUP; TEDESCO; PASSOS, 2008), sendo o sujeito ativo nesse processo, numa relação em que o todo é maior que a soma das partes, pois implica as partes e, fundamentalmente, as relações entre elas. Nesse contexto, as TDs eram compreendidas como potencializadoras do desenvolvimento sociocognitivo e afetivo. O suporte teórico dessas pesquisas estava na Epistemologia Genética de Jean Piaget, na Biologia do Conhecer, na Teoria da Autopoiese de Humberto Maturana e Francisco Varela, na Teoria do Emocionar de Humberto Maturana, nos estudos do sociólogo Manuel Castells e do filósofo Pierre Lévy. De acordo com Schlemmer et al. (2006); Schlemmer (2008); Schlemmer (2009) e Schlemmer (2010), um ECODI compreende:

  • Diferentes TD integradas tais como: AVA, MDV3D, tecnologias da Web 2.0, agentes comunicativos (ACs – criados e programados para a interação), dentre outros, que favoreçam diferentes formas de comunicação (textual, oral, gráfica e gestual), fato esse que resulta na compreensão do que entendemos por hibridismo tecnológico e digital;
  • Fluxo de comunicação e interação entre os sujeitos presentes nesse espaço e,
  • Fluxo de interação entre os sujeitos e o meio, ou seja, o próprio espaço tecnológico.

“Um ECODI pressupõe, fundamentalmente, um tipo de interação que possibilita aos ‘e-habitantes’ (considerando sua ontogenia) desse espaço, configurá-lo de forma colaborativa e cooperativa, por meio do seu viver e do conviver” (SCHLEMMER, 2010, p. 14).

ATIVIDADE: No que consiste uma epistemologia?

A partir do que foi explicitado acima, de seus conhecimentos anteriores e de buscas no Google Acadêmico, caso necessário, elabore a forma como compreende esse conceito e busque identificar como ocorre em relação a você.

Entretanto, com a evolução das pesquisas e apropriação de novas tecnologias e teorias, fomos identificando pistas, fornecidas pelos sujeitos participantes das pesquisas, principalmente em situações de aprendizagem imersiva em mundos virtuais em 3D. Essas pistas apontavam que os sujeitos, ao vivenciarem Experiências de Realidade Virtual (ERV) e Experiências de Virtualidade Real (EVR), por meio da imersão via avatar ou personagem, em ambientes 3D, evidenciavam uma maior atribuição de significado a conceitos e processos vinculados a essas experiências, especialmente em situações em que havia a possibilidade de o avatar ou personagem participar efetivamente da experiência, se misturando a ela. Foi possível identificar ainda que essa imersão, quando associada a desafios/problematizações/pistas (elementos presentes na mecânica dos jogos), propiciava um maior envolvimento dos estudantes com o objeto em estudos, enriquecendo contextos de aprendizagem.

ATIVIDADE: Que diferenças você pode estabelecer entre Experiência de Realidade Virtual e Experiência de Virtualidade Real?

Dica: O sociólogo espanhol Manuel Castells apresenta a diferenciação entre Realidade Virtual e Virtualidade Real em seu livro A sociedade em rede.

Além disso, pense nas experiências que já teve e tente diferenciar avatar e personagem.

Nesse contexto e ainda vinculada as ERV e EVR, bem como envolvendo algumas mecânicas dos jogos, uma experiências significativas que se somam às demais se refere à combinação da tecnologia Unity com a tecnologia SDK do Kinect, que resultou na criação de um sistema, em que o estudante, ao tocar em determinada parte de seu corpo, referente a tal sistema ou órgão, a interface captava o gesto e apresentava informações sobre aquele sistema ou órgão. Situações como essa possibilitam uma interação maior entre o sujeito e o sistema modelado em 3D, permitindo que a sua ação no meio presencial físico tenha efeito no meio digital virtual. Cabe ressaltar que essa tecnologia foi utilizada com o objetivo de testar uma interface mais natural e intuitiva, que possibilita usar os movimentos do próprio corpo para selecionar os órgãos e visualizá-los em 3D.

UNITY

O software Unity é um motor de desenvolvimento integrado que fornece uma funcionalidade pioneira para criação de jogos e outros conteúdos interativos. Poderá utilizar o Unity para montar sua arte e recursos em cenas e ambientes; adicionar física, editar e testar simultaneamente seu jogo e, quando preparado, publicar em suas plataformas escolhidas, tais como computadores fixos, a rede, iOS, Android, Wii, PS3 e Xbox 360.

Kinect e SDK

O Kinect é um aparelho com câmeras e microfones e pode ser conectado ao PC usando um pequeno adaptador com saída USB. O Kinect, associado ao Software Development Kit (SDK), permite desenvolver e implantar soluções que nos dão a capacidade de interagir naturalmente com os computadores, simplesmente gesticulando e falando. Utilizando o SDK, é possível: Mapeamento dos esqueletos de uma ou duas pessoas que estão na área de visualização do Kinect; Acesso à câmera padrão além da câmera que retorna a posição e a distancia (XYZ) de um objeto; Acesso aos recursos do microfone como supressão do ruído acústico e cancelamento de ecos.

Na sequência, novas pistas foram sendo identificadas, relacionadas à importância e à contribuição que diferentes TDs integradas (principalmente da Web 2.0 e Web 3D), utilizadas também a partir de celulares, tablets e outros dispositivos como o Kinect, na vinculação com espaços analógicos, poderiam trazer para a aprendizagem.  Dessa forma, começava a se delinear uma compreensão de hibridismo, para além do contexto das TDs, contemplando a coexistência e a necessidade de imbricação dos mundos presenciais físicos e digitais virtuais, bem como de modalidades educacionais.

Esses indícios nos levaram a pensar na possibilidade de configuração de Espaços de Convivência Híbridos e Multimodais (ECHIMs), o que pressupõe a imbricação de ECODI com outros espaços analógicos, bem como a perspectiva da multimodalidade, integrando mobile learning (por meio do uso de “Dispositivos Híbridos Móveis de Conexão Multirredes” (LEMOS, 2007a, p. 25), associados às mídias locativas digitais – “conjunto de tecnologias e processos infocomunicacionais cujo conteúdo informacional vincula-se a um lugar específico” (LEMOS, 2007b); immersive learning (Mundos Digitais Virtuais em 3D e games) e modalidade presencial física, bem como investigar, de forma mais aprofundada, as contribuições dos jogos e da gamificação para a aprendizagem. A nossa hipótese era a de que, nesse processo de configuração de ECHIMs, poderíamos encontrar elementos que nos permitissem construir novas metodologias e práticas pedagógicas no contexto da educação.

Dessa forma, deu-se continuidade nas pesquisas, agora mais especificamente no âmbito dos jogos e da gamificação como potencializadores para a construção de ECHIMs, ampliando a perspectiva da multimodalidade no que se referia à modalidade online, para além do electronic learning (e-learning), mobile learning (m-learning), immersive learning (i-learning), para o gamification learning (g-learning) e Game Based Learning (GBL), pervasive learning (p-learning), ubiquitous learning (u-learning).

e-Learning
Aprendizagem eletrônica, também conhecida como Educação a Distância e que ocorre predominantemente por meio de ambientes virtuais de aprendizagem como, por exemplo, o Moodle.

m-Learning
Aprendizagem com mobilidade, a qual faz uso de dispositivos móveis e redes sem fio e possibilita ao sujeito aprender em situação de mobilidade.

i-Learning
Aprendizagem imersiva, a qual faz uso de metaversos (mundos digitais virtuais em 3D) e sistemas de Realidade Virtual, em que o sujeito, por meio de um avatar ou personagem fica imerso num mundo virtual em 3D.

g-Learning
Aprendizagem gamificada, a qual faz uso de mecânicas e dinâmicas presentes nos jogos como forma de engajar o sujeito em contexto não jogo. Pode ocorrer com tecnologias analógicas, digitais ou híbridas, conforme apresentado anteriormente.

GBL – Game Based Learning
Aprendizagem baseada em jogos, a qual ocorre nos jogos e pode se dar a partir de três abordagens: jogos educacionais, jogos comerciais e desenvolvimento de jogos, conforme apresentado anteriormente.

p-Learning
Aprendizagem pervasiva, a qual faz uso de dispositivos móveis e redes sem fio e possibilita ao sujeito aprender em situação de mobilidade ao se deslocar por diferentes espaços, os quais fornecem informações socioambientais (contextuais) vinculadas ao objeto de estudo.

u-Learning
Aprendizagem ubíqua, a qual faz uso de dispositivos móveis e redes sem fio e possibilita ao sujeito aprender em situação de mobilidade ao se deslocar por diferentes espaços, os quais fornecem informações socioambientais (contextuais) vinculadas ao objeto de estudo e, ainda, informações “sensíveis” ao seu perfil, necessidades, ambiente e demais elementos que compõem seu contexto de aprendizagem, em qualquer lugar e momento, por meio de tecnologias de localização (GPS, sistemas de navegação, sistemas de localização de pessoas, jogos móveis), tecnologias de identificação (etiquetas RFID e QR Code, marcadores) e sensores.

Nesse contexto, em 2014, vinculado à pesquisa “Gamificação em espaços de convivência híbridos e multimodais: a educação na cultura digital”[6], foi construído, no âmbito do SBGames K&T, o Alternate Reality Game – ARG Fantasma no Museu (CAROLEI; SCHLEMMER, 2015), envolvendo experiências existentes no Museu de Ciência e Tecnologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. O ARG, por meio de uma narrativa ficcional, cujo personagem principal era o fantasma do Einstein (modelo 3D do cientista), instigava e apoiava uma exploração aprofundada do espaço físico, na qual os jogadores eram engajados num jogo de “caça às pistas”, num processo pervasivo e ubíquo, em busca de marcadores vinculados a determinadas experiências científicas desenvolvidas por diferentes cientistas. Essas, ao serem encontradas, por meio de realidade misturada e realidade aumentada, provocavam o aparecimento de fantasma que apresentava a missão a ser realizada. As diferentes missões instigavam o jogador a vivenciar a experiência e aprofundar sua explicação do fenômeno observado no museu e, ao final, apresentar sua própria explicação. A abertura do evento, também organizada pelos K&T, envolveu um esquete com a participação do Fantasma do Einstein e da Caça-Fantasmas, numa combinação de vídeo (Einstein) e participação presencial física da Caça-Fantasmas

SBGames K&T

O evento foi direcionado para crianças e adolescentes, sendo eles os mentores, os organizadores; e os pesquisadores, os apoiadores, mediadores, facilitadores dessa realização. Ao colocar o protagonismo nas mãos das crianças e adolescentes, objetivamos melhor conhecer o que eles desejam, seus principais interesses e a forma como os jogos integram o seu viver e conviver. Buscamos ainda, do ponto de vista da educação, compreender usos e possibilidades educacionais dos games.

Ainda na perspectiva de aprofundar a compreensão do potencial do hibridismo e da multimodalidade na educação, foi desenvolvida a pesquisa “Gamificação em espaços de convivência híbridos e multimodais: uma experiência no ensino superior”[7], concluída em janeiro de 2016. Nessa pesquisa, a Atividade Acadêmica Ensino e Aprendizagem no Mundo Digital (AA-EAMD), vinculada ao curso de Pedagogia, foi gamificada (por meio de mecânicas como narrativa, pistas, missões, achievements) apropriando-se do método cartográfico de pesquisa-intervenção, adaptado enquanto prática pedagógica por Schlemmer e Lopes (2012, 2016), Schlemmer (2014), Schlemmer, Chagas, Schuster (2015), e tendo como subsídio a cognição inventiva, proposta por Kastrup, Tedesco e Passos (2008).

As pistas encontradas durante o movimento da pesquisa evidenciaram que a gamificação, associada ao método cartográfico de pesquisa-intervenção, enquanto prática pedagógica intervencionista e subsidiada pela cognição inventiva, possibilitou o desenvolvimento de situações de ensino e de aprendizagem (na formação inicial) que se configuraram enquanto Espaço de Convivência Híbrido e Multimodal construído num processo de cocriação, a partir da leitura crítica do cotidiano, abordando problemáticas, nesse caso, vinculadas à Educação Básica (ensino fundamental), às quais os games e processos gamificados poderiam contribuir como possibilidade de mudança (perspectiva presente no “Games for Change”).

A vinculação da prática pedagógica no contexto da AA-EAMD, com a leitura do cotidiano das escolas, possibilitou um estranhamento e uma análise crítica da realidade, a partir do estabelecimento de relações com as teorias em estudo. Além disso, na prática pedagógica, a colaboração e cooperação das estudantes foi umas das chaves do processo; identificou-se um engajamento profundo dessas estudantes desenvolvendo a autoria, autonomia e o pensamento crítico. Através de momentos de imersão e diversão, as estudantes significaram e ressignificaram conceitos e a sua própria prática pedagógica, a partir da reflexão de suas vivências e experiências no processo de construção do conhecimento.

A vivência dessa prática na vinculação com o percurso de aprendizagem, trilhado por cada clã no desenvolvimento do game ou processo gamificado na escola, resultou em maior engajamento das estudantes na AA-EAMD; na ampliação da significação sobre a aprendizagem que ocorreu, a partir dessa vivência; e na ressignificação da experiência vivenciada na formação inicial para o ensino fundamental, possibilitando às estudantes atribuir sentido à docência na contemporaneidade. Participar de um game ou processo gamificado e, simultaneamente, realizar um game ou processo gamificado na escola possibilitou às estudantes da AA-EAMD um sentimento profundo de confiança e de autoestima, o que contribuiu para que a aprendizagem fluísse.

Assim, ao conseguir trabalhar na perspectiva da invenção de problemas ao observar o cotidiano das escolas e contribuir para a sua solução, as estudantes experimentam um sentimento positivo de realização e competência, e isso contribuiu para que se motivassem ainda mais para o próximo desafio. A organização por clãs, aliada ao desafio proposto na narrativa que envolveu realizar missões, instigou a prática colaborativa e cooperativa (tanto das acadêmicas, quanto das estudantes da educação básica), pois, foi necessário definir estratégias e uma forma de organização para desenvolver o game e/ou processo gamificado.

Dessa forma, ao longo do processo de construção do conhecimento, muitas estudantes que já eram docentes experientes, foram desacomodadas e provocadas a repensar a sua prática em sala de aula, a partir da reflexão sobre o seu próprio processo de aprendizagem, na relação com o que os seus estudantes também vivenciavam enquanto estavam aprendendo (significação e ressignificação).

Essa tomada de consciência é significativa para a transformação das práticas pedagógicas, pois o professor começa a estabelecer diferenciações entre: 1) o “uso de” determinadas TDs na educação X a apropriação das TDs no seu processo de aprendizagem, o que possibilita a criação de situações de aprendizagem, nas quais os sujeitos operam com essas tecnologias, vivenciando-as na construção de experiências que possibilitam a significação no processo de aprendizagem; 2) a “transmissão de conteúdo” X a construção do conhecimento; 3) o “aplicar” uma metodologia X o desenvolver uma metodologia, 4) o “dar aulas” X a construção de espaços de aprendizagem.

No que se refere à formação docente, é possível dizer que uma das contribuições fundamentais dos ECHIMs consiste em possibilitar aos professores migrar de uma concepção de uso da Informática na Educação, para a apropriação da informática pela educação.

Na perspectiva do uso da Informática na Educação, portanto, do uso de TDs na educação, as TDs são compreendidas como algo externo, pronto, fechado, acabado, cabendo à educação se adaptar a elas, o que lhe confere somente o lugar de “usuária”, resultando muitas vezes, do ponto de vista das metodologias e práticas, num “fazer mais do mesmo” com a diferença de que se está usando as tecnologias digitais. Assim, há transposição de metodologias e práticas presentes no meio analógico para o meio digital. Um exemplo pode ser o que ocorreu com a lousa eletrônica. Dessa forma, temos a informática, as TDs, como simplesmente uma novidade na educação.

Na perspectiva da apropriação da informática pela educação, portanto, da apropriação das TDs pela educação, há atribuição de sentido às TDs pela compreensão de como se aprende com elas, havendo dessa forma significação, algo interno, possibilitado pelo fato de os professores terem experienciado as TDs no seu próprio processo de aprendizagem e refletido sobre como podem, a partir dessa vivência, ajudar outros a aprender, a partir de novos processos de apropriação. Essa perspectiva confere à educação, ao professor, o lugar de protagonista, o que implica invenção de metodologias e práticas num “fazer diferente”. Um exemplo pode ser a apropriação das tecnologias móveis e sem fio como forma de ampliar os espaços e tempos da aprendizagem. Dessa forma, temos a informática, as TDs, como processo de inovação na educação. É importante ressaltar que essa perspectiva somente emergiu quando as docentes, ao atribuírem sentido às TDs, foram capazes de pensar os processos de ensino e de aprendizagem em congruência com a tecnologia, pela maior familiarização com a tecnologia e pela análise especializada sobre as possibilidades e limites para a prática didático-pedagógica, com base na natureza e especificidade do meio.

Assim, para que as competências técnico-didático-pedagógicas – saber fazer docente na atualidade ­– possam ser desenvolvidas, os processos formativos precisam ser pensados de uma perspectiva sistêmica, ou seja, não se trata de formar o professor de maneira fragmentada, isolada (conhecimentos específicos da área de conhecimento, conhecimentos específicos da área da didática e conhecimentos específicos da área tecnológico-digital), precisa ser trabalhado o que surge da interação desses três elementos, pois os processos de ensino e de aprendizagem são sistêmicos. Assim, não é possível desejar inovação na educação, se o tipo de formação propiciada ao professor privilegia o “uso de” determinada TD. A perspectiva precisa mudar do “uso de TDs” para “apropriação das TDs”, a fim de possibilitar a construção de práticas didático-pedagógicas para esse tempo histórico e social, o que implica, necessariamente, a congruência com as diferentes TDs.

No que se refere à construção dos conceitos, o percurso das pesquisas desenvolvidas até o momento nos possibilitou ampliar o conceito de ECODI para o ECHIM, sendo, de acordo com Schlemmer (2016, 2017 e 2018) e Schlemmer, Backes e La Rocca (2016), o híbrido compreendido a partir do fluxo das ações, interações e comunicação entre atores humanos (AH) e atores não humanos (ANH), que ocorrem:

  • em espaços geográficos e digitais, incluindo o próprio espaço híbrido, portanto, híbrido quanto ao espaço;
  • pela presença física e digital virtual (perfil em mídia social, personagem em jogo, avatar em metaversos ou por webcam), portanto, híbrido quanto à presença;
  • por meio de diferentes tecnologias analógicas e digitais integradas, de forma que juntas favoreçam distintas formas de comunicação e interação textual, oral, gráfica e gestual, portanto, híbrido quanto às tecnologias;
  • numa imbricação de diferentes culturas digitais (gamer, maker) e pré-digitais, portanto, híbrido em relação à cultura.

Dessa forma, o híbrido constitui-se em redes e fenômenos indissociáveis, que interligam naturezas, técnicas e culturas. É por meio da coexistência e das imbricações entre AH e ANH, dos espaços geograficamente localizados e dos espaços digitais virtuais, passados por todo tipo de tecnologias analógicas e digitais e culturas, que o mundo se constrói e reconstrói.

Já o conceito de multimodalidade, segundo Schlemmer (2016, 2017 e 2018) e Schlemmer, Backes e La Rocca (2016), implica integrar a modalidade presencial-física e a modalidade online, sendo que esta última pode hibridizar e-learning, m-learning, p-learning, u-learning, i-learning, g-learning e GBL.

Atópico

“O habitar atópico se configura, assim como a hibridação, transitória e fluida, de corpos, tecnologia e paisagem, e como o advento de uma nova tipologia de ecossistema, nem orgânica, nem inorgânica, nem estática, nem delimitável, mas informativa e imaterial.” (DI FELICE, 2009, p. 291)

Assim, a compreensão da tecnologia conceito Espaço de Convivência Híbrido e Multimodal passa a se fundamentar numa abordagem epistemológica reticular (rede), conectiva (conexão) e atópica (DI FELICE, 2009, 2012), superando a visão cartesiana, dicotômica, binária e antropocêntrica que insiste na separação e na “purificação dos híbridos” (LATOUR, 1994), apoiada nas mais recentes teorias, entre elas a Cognição Enativa, proposta por Francisco Varela, a Cognição Inventiva, proposta por Virgínia Kastrup, Silvia Tedesco e Eduardo Passos, que compreendem o conhecimento como interpretação, sendo que a interação nessa perspectiva deixa de pressupor a preexistência de dois termos (organismo e meio) que interagem e passa a ser compreendida enquanto construção de si e do meio, onde conhecer a realidade é um ato de afirmação de si, de autoengendramento, de autopoiese: conhecer é fazer e vice-versa (KASTRUP; TEDESCO; PASSOS, 2008). Compreensão também presente na Teoria Ator-Rede, que reconhece a codeterminação sujeito-objeto e, para além disso, dá ênfase à participação dos não humanos – objetos e quase objetos – nas relações sociais, superando o pressuposto epistêmico de independência e supremacia do humano sobre a técnica e a natureza, o que pouco contribui para que possamos compreender a complexidade que se estabelece num contexto híbrido que é constituído por múltiplas matrizes, misturas de natureza e cultura, portanto, a não separação entre cultura/natureza, humano/não humano etc., conforme propõe Latour (1994). Dessa forma, busca-se propor metodologias e práticas que sejam significativas para os atuais sujeitos da aprendizagem e objetivem um processo de desenvolvimento emancipatório e cidadão.
Então, é possível dizer (SCHLEMMER, 2016) que um espaço de convivência híbrido e multimodal se configura, na educação, quando: há a vivência, a compreensão e a apropriação desse espaço, configurando-o como um espaço de convivência no processo educativo, representando uma inovação educacional. Conforme Schlemmer e Backes (2015), a inovação não no aparato tecnológico, mas no que os seres humanos conseguem, a partir da sua apropriação, construir, inventar. Caso não ocorra a ação do ser humano em congruência com os espaços híbridos e multimodais, podemos estar falando simplesmente de uma novidade e não de uma inovação na educação.

Resumo

A relação simbiótica entre o ser humano e a técnica revela-se não só na transformação da natureza e do mundo, mas na transformação do próprio ser humano. Assim, o desenvolvimento tecnológico pode ser considerado como produto de atividade absolutamente natural como qualquer outra atividade simbólica. Dessa forma, ao mesmo tempo em que são produtos do desenvolvimento tecnocientífico das últimas décadas, as TDICs também são responsáveis pelo surgimento da cibercultura. A noção básica de hibridismo, assim, necessariamente passa pelo entendimento das condições de possibilidade do seu surgimento dentro do contexto sociocultural atual.

Os produtos da técnica moderna são importantes fontes de imaginário, entidades que participam plenamente da instituição de mundos percebidos. O movimento da cibercultura se insere num tempo mais amplo que o do surgimento dos computadores e da informática. No entanto, o surgimento das redes digitais e a internet são elementos que demarcam uma fronteira nítida em relação ao modo como as pessoas – as conectadas – passam a atuar. A noção básica de hibridismo passa pela compreensão da própria cultura como resultado do híbrido humano-coisas, ou seja, é necessário compreender a cultura como fenômeno da relação entre humanos e seus artefatos, seus objetos, suas tecnologias, seus corpos.

“[…] as tecnologias digitais, como expressão desse viver e conviver cotidiano, normalmente são utilizadas de forma articuladas, configurando o hibridismo entre as tecnologias, ou seja, um conjunto, uma mistura e uma articulação” (BACKES; SCHLEMMER; RATTO, 2017, p. 1203). Os seres humanos utilizam as diferentes TDICs no seu cotidiano, compondo e recompondo o que podemos chamar de hibridismo tecnológico e digital, entendido como a configuração de um conjunto de TDICs que possibilitam a ação, relação, interação e compartilhamento das representações dos seres humanos; permitem configurar espaços próprios e particulares de cada grupo social. O conviver no mundo contemporâneo implica um “enraizamento dinâmico”, caracterizado pela necessidade: de compartilhar as emoções, de viver juntos (origem), de produzir e autoproduzir e de desenvolver tecnologias (futuro). A composição do hibridismo tecnológico e digital é própria e particular a cada grupo que configura o seu viver e conviver nesses ciberespaços, pois emerge do cotidiano. A Educação na contemporaneidade implica considerar os processos de ensinar e de aprender, na coexistência entre os espaços geograficamente localizados e o ciberespaço e compreender que as rápidas mudanças ocorrem de maneira determinante e determinada entre sociedade, educação e TDICs.

Diferentes TDs integradas (principalmente da Web 2.0 e Web 3D), utilizadas também a partir de celulares, tablets e outros dispositivos, na vinculação com espaços analógicos, têm ampliado a compreensão de hibridismo para além do contexto das TDs, contemplando a coexistência e a necessidade de imbricação dos mundos presenciais físicos e digitais virtuais, bem como de modalidades educacionais. Tal compreensão é/tem sido condição de possibilidade para a configuração de Espaços de Convivência Híbridos e Multimodais (ECHIMs). Esse processo de configuração de ECHIMs pode oferecer elementos que nos permitam construir novas metodologias e práticas pedagógicas no contexto da educação. No que se refere à formação docente, é possível dizer que uma das contribuições fundamentais dos ECHIMs consiste em possibilitar aos professores migrar de uma concepção de uso da Informática na Educação, para a apropriação da informática pela educação. O conceito de multimodalidade implica integrar a modalidade presencial-física e a modalidade online, sendo que a última pode hibridizar e-learning, m-learning, p-learning, u-learning, i-learning, g-learning e GBL. Um espaço de convivência híbrido e multimodal se configura, na educação, quando: há a vivência, a compreensão e a apropriação desse espaço, configurando-o como um espaço de convivência no processo educativo, representando uma inovação educacional.

Leituras Recomendadas


Compêndio da Ação Cultura Digital

(AÇÃO CULTURA DIGITAL, 2009)

Esse compêndio apresenta uma série de artigos que relatam ações de ONGs, instituições educacionais, universidades e sociedade civil, além de políticas públicas voltadas para a definição dos marcos teóricos e tecnológicos de temas relacionados à cultura digital.


Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea

(LEMOS, 2002)

Livro de pesquisador brasileiro com contribuição importante para entender a cibercultura como um fenômeno social e comunicacional.


A cibercultura e seu espelho: campo de conhecimento emergente e nova vivência humana na era da imersão interativa

(TRIVINHO; CAZELOTO, 2009)

Importante obra produzida por pesquisadores da Associação Brasileira de Cibercultura que reúne textos com reflexões e pesquisas para orientar e problematizar o campo da pesquisa em/sobre cibercultura.


Hibridismo cultural, “antropofagia” identitária e transterritorialidade

(HAESBAERT, 2012)

Texto importante para aprofundar o entendimento sobre o conceito de hibridismo cultural.


Exercícios

Curadoria com suporte das tecnologias digitais
(tempo estimado: 4 horas)

O objetivo dessa atividade é provocar uma experiência de sensibilidade e cognição como funções da inteligência, e de registro e compartilhamento como funções da sociabilidade.

Você vai precisar de:

  • Um smartphone e um tablet ou computador desktop com acesso à web (3G ou Wi-Fi)
  • Um app instalado para ler códigos de resposta rápida (QR Codes) ou que tenha o recurso ativado por padrão na sua câmera
  • Um app instalado para gerar códigos de resposta rápida (QRCodes)
  • Impressora laserjet ou deskjet e papel, tesoura, cola, folha de cartolina ou cartão (gramatura grande) e papel Contact transparente

A experiência é composta por seis etapas/atividades:

  1. De posse do seu smartphone, com o registro de localização por GPS ativado, caminhar, deslocando-se do local onde está, distanciando-se do ponto de partida (sair do prédio, de casa, da sala de aula, da escola/faculdade etc.) e depois retornar. No caminho, registrar (escrever, fotografar, filmar, gravar os sons) aquilo que lhe afeta (atrai ou afasta, apraz ou incomoda). Por exemplo, um buraco na calçada, um prédio ou construção histórica, uma cena inusitada, um personagem conhecido que habita ou frequenta o lugar etc. Se possível, marque (adicione aos locais/pins favoritos) no app de mapas do seu smartphone a localização exata (geotag) do(s) elemento(s) registrado(s). Lembre-se de ativar a opção de “salvar localização” antes de fotografar, se a câmera do seu smartphone oferece esse recurso.

    Observação importante:
    O registro deve dar visibilidade estética e/ou informacional aos elementos cartografados (imagens, áudio, vídeo, texto/verso/poesia). Portanto, evite a redundância apenas retratando um lugar, objeto ou pessoa. Procure a releitura, um ângulo ou momento inusitado; zoom e detalhes; ampliação e foco naquilo que geralmente passa despercebido. É importante considerar que esse é um exercício de sensibilidade.

  2. Ao retornar ao seu ponto de partida, utilizando um editor de sua preferência e um computador desktop ou tablet, amplie e produza novos significados aos elementos registrados através de reflexão e pesquisa na web ou bibliotecas (histórico, biografia, polêmicas ou problemas cotidianos relacionados, outras leituras/figuras etc.), bem como no debate coletivo (grupos, colegas, familiares) ou na coleta de depoimentos de agentes locais (moradores, frequentadores, usuários, proprietários, funcionários etc.). Coloque-se no lugar de um curador que pretende instigar novas leituras acerca dos elementos registrados na caminhada. Reúna no editor suas descobertas e os elementos registrados (fotos, textos etc.)
  3. Com base na curadoria realizada, publique no blogue Escola Aumentada (ou no seu blogue pessoal) o material produzido. Se possível, incluir na publicação um link para a localização no mapa de onde foi realizado o registro através do serviço do Google Maps.
  4. Utilizando app de sua preferência, gere QR Codes dos links/URL para cada postagem produzida no blogue. Salve as imagens (jpg ou png) dos QR Codes gerados. Imprima os QR Codes numa folha, recorte-os e cole-os no papel cartão ou cartolina, produzindo cartões com os códigos. Cubra toda a superfície dos cartões com o papel Contact para impermeabilizá-los. Produza totens com esses QR Codes, como no exemplo da figura.

  5. Retorne aos locais em que foram produzidos os registros e veja uma forma de fixar o totem junto ao elemento registrado, de forma que o totem fique visível às pessoas que por ali circulam. Ex.: hastes fincadas no chão, colando com fita adesiva etc. Observe se as pessoas que passam por perto notam o seu totem e se tentam capturar o QR Code. Você pode induzir o processo, postando-se diante do totem e fazendo sua leitura com um leitor de QR Code.
  6. Acompanhe as reações à sua intervenção nos locais em que instalou seu totem observando in loco ou através dos comentários deixados no blogue onde foram postados os registros. Reflita sobre as tecnologias utilizadas nesta experiência, relacionando ao conceito de hibridismo tecnológico e digital, à cibercultura e às possibilidades educacionais desse tipo de atividade/experiência.

Notas

[1] O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001

[2] Cf. Estátua de Amon em Tebas; os oráculos, o ser de bronze de Talos; o mito de Pigmalião; os relógios hidráulicos, os pássaros mecânicos e o robô teatral de Héron de Alexandria <http://bit.ly/aJYIHc>.

[3] Cf. “O pato de Vaucanson” <https://goo.gl/xwxrzm>; “O robô de Leonardo” <https://goo.gl/JvdDCX>; “O Tear de Jacquard” <https://goo.gl/c7dGMo e https://goo.gl/z2PaMq>.

[4] Cf. Automates Avenue Museum  <https://bit.ly/3nbFXNV>, Falaise, França.

[5] No original: […] concernant Internet, j’entends de cretiques qui se basent sur le fait que les grandes catégories qui structurent les réseaux sont floues. Mais la vie, elle-même n’est jamais figée. Et donc, pour moi, ces critiques dogmatique, qui prédéfiniraient l’ordre social et une vie rationnellement encadrée, se désmasqueront d’elles mêmes. Ma sensibilité théorique m’amène à observer avec générosité ce qui naît, comme les expressions de la vie. Et il se trouve que ce vitalisme ou cette vitalité s’apuie en effet sur le développement téchnologique.

[6] Pesquisa vinculada a uma bolsa Produtividade em Pesquisa do CNPq.

[7] Financiada pelo CNPq, CAPES e FAPERGS.

Referências

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BACKES, L. A Configuração do Espaço de Convivência Digital Virtual: A cultura emergente no processo de formação do educador. Thèse de doctorat en éducation, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo-RS, (cotutela Science de l’Education), Université Lumière Lyon 2, Lyon, 2011. 346 p.

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CAROLEI, P.; SCHLEMMER, E. Alternate Reality Game in Museum: A Process to Construct Experiences and Narratives in Hybrid Context. In: Proceedings of EDULEARN2015 Conference. v. 1. Barcelona: IATED, 2015. p. 8037-8045.

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Autoria


Eliane Schlemmer
(http://lattes.cnpq.br/5391034042353187)
É Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq e avaliadora ad hoc da CAPES, do CNPq e da FAPERGS. Doutora em Informática na Educação – Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS (2002), Mestre em Psicologia do Desenvolvimento – UFRGS (1998), Bacharel em Informática – Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos (1992). Atualmente, é professora-pesquisadora titular do Programa de Pós-Graduação em Educação na Unisinos e líder do Grupo de Pesquisa Educação Digital – GPe-dU Unisinos/CNPq (www.unisinos.br/pesquisa/educacao-digital), desde 2004. Principais áreas de atuação: pesquisa, desenvolvimento, docência, assessoria e consultoria na área da Educação, Educação Digital, Novas modalidades em Educação, ambientes virtuais de aprendizagem, metaversos – mundos digitais virtuais em 3D, games e gamification, agente comunicativo, comunidades virtuais de aprendizagem e de prática, metodologia de projetos. Atua desde 1989 na área, com experiência em Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio, Ensino Superior incluindo Pós-Graduação – em nível de especialização, mestrado e doutorado; e em assessoria, consultoria e capacitação na área de Educação Digital, Educação Online e Educação Corporativa. (incluindo Secretarias Municipais de Educação, Redes de Escolas Particulares e Empresas). É autora de livros entre eles: m-learning e u-learning: novas perspectivas da aprendizagem móvel e ubíqua, editado pela Pearson Prentice Hall, em 2011, Comunidades de Aprendizagem e de Prática em Metaversos, editado pela Cortez, em 2012, e Learning in Metaverses: Co-Existing in Real Virtuality, editado pela IGI Global (EUA), em 2015.

E-mail: elianeschlemmer@gmail.com


Daniel de Queiroz Lopes
(
http://lattes.cnpq.br/6493381786772205)
Graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1994), mestrado em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2000) e doutorado em Informática na Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008). É Professor Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, junto ao Departamento de Estudos Básicos, na área de Aprendizagem em Ambientes Digitais. É professor do Programa de Pós-Graduação em Informática na Educação da UFRGS. Faz parte do Núcleo de Estudos em Educação na Cultura Digital (FACED/UFRGS/CNPq) Grupo de Pesquisa em Educação Digital (GPe-dU/UNISINOS/CNPq) e do Laboratório de Ambientes Virtuais de Aprendizagem – Lavia (PPGEDU/UCS/CNPq). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em aprendizagem, psicologia do desenvolvimento humano e tecnologias na educação, atuando principalmente nos seguintes temas: cibercultura, criatividade, docência online, ecologias e políticas cognitivas, robótica educacional, e epistemologia genética.

E-mail: daniel.lopes@ufrgs.br.


Luciana Backes
(http://lattes.cnpq.br/6301625161386664)
Graduada em Pedagogia – Habilitação Magistério e Séries Iniciais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1996), especialização em Informática na Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2002), mestrado em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2007) e doutorado em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2011) e Sciences de l’Education pela Université Lumière Lyon 2 (2011). Bolsa de Estágio Pós-Doutoral no Exterior CAPES, na Université Paris Descartes Paris V – Sorbonne (2013-2014). Professora titular da Universidade La Salle – Canoas, Programa de Pós-Graduação em Educação. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Digital, atuando principalmente nos seguintes temas: processos de ensino e de aprendizagem, construção do conhecimento, formação do educador, práticas pedagógicas, educação online, ambiente virtual de aprendizagem, metaverso, hibridismo tecnológico digital, Espaço de Convivência Digital Virtual – ECODI, comunidades virtuais de aprendizagem, processo de autonomia, processo de autoria, dimensões do acoplamento estrutural, cultura emergente. Líder do Grupo de Pesquisa Convivência e Tecnologia Digital na Contemporaneidade COTEDIC UNILASALLE/CNPq. Pesquisadora visitante ao Laboratoire Sciences, Société, Historicité, Education, Pratiques (S2HEP) Université Claude Bernard Lyon 1.

E-mail: lucianabackes@gmail.com